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ANA VICENTE

20.04.15

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ANA VICENTE, morreu a 19 de Abril de 2015, depois de uma luta feroz contra o cancro que a vitimou. Dez anos antes, tinha estado com ela, na nminha casa do Estoril - éramos praticamente vizinhas - a entrevistá-la para um livro dedicado a mulheres - que nunca chegou a ser publicado com as entrevistas. Aqui fica o testemunho desta senhora invulgar, uma mulher única.

 

Entrevista Ana Vicente

Estoril, 2 Setembro, 2005

 

HELENA VASCONCELOS. Gostaria de lhe colocar certas questões que se baseiam em dois pontos essenciais:

O primeiro tem a ver com a sua história como mulher. Será possível dizer-me o que a faz sentir-se mulher e de que forma é que esse facto marca a diferença – positiva – de género e como vive essa condição?

 

O segundo relaciona-se com a forma como se materializa o seu interesse pelas chamadas causas das mulheres e o seu trabalho directo e interesse pela História.

 

ANA VICENTE. De facto tenho a sorte de ter nascido numa família em que as mulheres foram sempre muito importantes e, portanto, a memória da família é importante. Na minha família o valor das mulheres era e é, importante. Eu pertenço à quarta geração de feministas e a minha filha tem já uma filha e está à espera de outra – portanto espero que esta linha se perpetue. Outro dado curioso – a minha filha pertence à quinta geração que publica livros. E eu pertenço à quarta geração de mulheres que escrevem sobre a própria família. Tive uma bisavó, Bessie, feminista do século XIX, que escreveu livros de memórias, a minha avó fez o mesmo – dava-se com muita gente conhecida, com o Churchill e o Henry James, Graham Greene, Katherine Mansfield, por exemplo vivia no meio literário inglês – e a minha mãe recolheu muitos desses textos, editou-os e publicou-os

Tudo isto do lado da minha mãe que era jornalista inglesa, católica. A irmã dela casou com um conde mas ela casou com um jornalista. O pai dela era jornalista no Times e, trabalhou lá quarenta anos, a mãe escritora – free-lancer – a avó feminista activista, aparece nos livros todos sobre a história das mulheres no século XIX; depois apaixonou-se por um francês aos 38 anos, casou, viveram idilicamente durante cinco anos e depois ele morreu. Tiveram dois filhos, Hilaire Belloc e Marie. A minha mãe teve sempre muito orgulho na sua família, no seu meio. O meu pai, português também era oriundo de um meio chamado “profissional”, o pai dele era um engenheiro, formado na Escócia, o avô dele do lado da mãe era médico mas estava ligado ao meio teatral e produziu imensas peças – Anacleto de Oliveira. A minha avó paterna não tinha profissão, era doméstica mas era uma personalidade. Tudo isto porque acabei de escrever um livro sobre a minha família. O meu pai sempre teve grande admiração pela minha mãe. Eu nasci num meio em que as mulheres sempre foram muito consideradas – tenho um irmão e uma irmã – embora não queira dizer que tudo fosse perfeito. A minha mãe, como inglesa, ao casar com um português desejou seguir os cânones portugueses, não me queria deixar sair sozinha quando eu era adolescente. E achava que era normal que eu casasse e o homem é que era suposto sustentar a família, e disse-me que eu não devia preocupar-me com a carreira. Assim, eu fui para o Colégio inglês, o St Julian’s School em Carcavelos e depois fui para um Colégio de freiras em Inglaterra, onde a minha mãe já tinha andado. Um colégio muito rigoroso mas não só em termos de conduta como exigente em termos intelectuais. Apesar disso, depois disseram-me que era melhor eu aprender dactilografia mas eu não tinha tal ambição. E, nessa altura, eu não fui para a Universidade. Sou muito independente e queria ganhar dinheiro e ser autónoma. Lembro-me – porque sempre fui anti-salazarista – que me revoltava a situação das mulheres. Revoltava-me que a minha mãe tivesse de ter licença do meu pai para ir, de dois em dois anos, visitar a família a Inglaterra. Muito cedo despertei – sem ter sido oprimida – para a injustiça do desequilíbrio de poder entre homens e mulheres. Por exemplo, mesmo na minha família, era claro que o meu irmão, por ser homem, iria para a Universidade. Em Portugal, um homem que não vá para a Universidade, está perdido… (É advogado). A minha irmã, tal como eu, não foi obrigada nem estimulada a estudar a nível superior. E eu tenho outra característica: sou muito militante. Gosto de me empenhar em causas. Fui dirigente da PRAGMA  e fui presa pela polícia política (Pide) porque era dirigente de uma cooperativa cultural e era a única mulher. Estive dois dias presa mas o meu sogro, que era advogado, teve clientes assassinados pela Pide. Os comunistas pobres que o meu sogro defendia eram assim tratados. Aconteceram coisas terríveis no País dos bons costumes.  Interessei-me sempre pela causa anti-salazarista. Uma das questões que a Pragma abordava era a da situação das mulheres. Foi fechada, o director era o Arquitecto Nuno Teotónio Pereira que foi preso mais do que uma vez. Integrava-me tal como ele no Grupo dos chamados Católicos Progressistas que se reuniam na Capela do Rato[1]. Eu não participei nessa altura porque estava em Paris mas eram as causas com as quais me identificava. Lembro-me que quando o Papa Paulo VI anunciou que ia à Índia, Franco Nogueira que era Ministro dos Negócios Estrangeiros quis que os portugueses não soubessem nada dessa viagem. E houve um grupo de católicos, no qual eu estava, dirigidos pelo corajosíssimo Teotónio Pereira, agora com 83 anos, que fez um jornal clandestino em Espanha. Eu tinha contactos na Juventude Operária Católica Espanhola – que eram anti-franquistas - porque tinha acompanhado um grande encontro de Juventude Católica onde fui como tradutora - gratuitamente, obviamente. Produzimos um Jornal chamado “Igreja, Presente” com a notícia da ida do Papa à Índia.

Eu gosto de ser militante. Mas tenho a noção que há certas atitudes “militantes” que, em Portugal, podem cair rapidamente no ridículo. Dou-lhe um exemplo. A questão da ordenação das mulheres na Igreja Católica. Em Inglaterra e na Alemanha, para dar só dois exemplos, as mulheres manifestam-se continuamente. De cada vez que há uma ordenação – de padres – elas manifestam-se dizendo: nós também queremos ser ordenadas e só o não o podemos fazer por sermos mulheres. Nós nunca fizemos isso em Portugal, primeiro porque infelizmente só seríamos quatro ou cinco. Sou sensível a estas diferenças culturais. Há em Portugal uma tendência para banalizar e ridicularizar essas manifestações, o que não ajuda as causas.

 

H.V.: Essa é uma cultura muito anglo-saxónica e que não está enraizada na cultura portuguesa.

A.V. Sim, a minha mãe já era assim. Comecei a trabalhar com o meu pai, que tinha o jornal Anglo-Portuguese News, fui trabalhar noutros lugares – trabalhei como Professora de Inglês no ISLA (Instituto Superior de Línguas e Administração) e trabalhei em publicidade, onde conheci o meu marido com quem casei em 1970. O meu marido era filho do Arlindo Vicente[2] e a sua actividade de docente na Universidade foi prejudicada por se ter recusado a assinar uma declaração a dizer que era anti-comunista. O meu marido não era comunista mas era assim, nesses tempos. Entretanto fui para um Curso de Cultura Religiosa, em horário pós-laboral – trabalhava – porque sempre me interessaram os temas religiosos e a religião. Os meus pais eram profundamente católicos, praticavam o catolicismo quotidiano e não aquele em que se vai só à missa para mostrar aos outros. Era uma questão de formação: liam, estudavam e eu fiz o mesmo. Só mais tarde percebi como a Licenciatura era importante, fiz o Curso de Línguas e Literaturas Modernas – Estudos Portugueses e Ingleses na Universidade de Lisboa. Em 1970 fomos para Paris – onde nasceu a minha filha – porque o meu marido teve uma Bolsa de Investigação da Fundação Calouste Gulbenkian – a única entidade que o fazia – e lá estivemos três anos e meio, enquanto ele se doutorou e eu aproveitei para estudar em Vincennes. O meu marido sempre me apoiou e, coisa rara nos homens portugueses, não tem “inveja” de mim. Pelo contrário, incentiva-me e apoia-me muito, e eu a ele. Uma relação de total igualdade e de grande consideração e respeito mútuos. É claro que ele é filho de um homem que na campanha de 1958 integrou as questões das mulheres. Voltámos a Portugal poucos dias antes do 25 de Abril, os dois desempregados e com uma filha. Mas em Outubro o meu marido entrou finalmente para a Universidade como docente e eu entrei para o Gabinete de Maria de Lurdes Pintassilgo que foi nomeada Secretária de Estado da Segurança Social do Primeiro Governo Provisório. Repare que ainda não era licenciada mas fui trabalhar no gabinete de assessores de Imprensa. Foram momentos exaltantes e eufóricos e em 1975 fiquei á espera do meu filho. Não andava na rua, tinha de trabalhar e estava grávida. Acompanhei muito tudo aquilo. Outra coisa que eu fiz logo a seguir ao 25 de Abril foi trabalhar como tradutora/intérprete "free-lancer" de jornalistas estrangeiros que caíram aos magotes, cá em Portugal. Fui intérprete de uma entrevista dada por Álvaro Cunhal, cerca de três semanas depois do 25 de Abril. Ele estava no edifico da Assembleia da República e nunca poderei esquecer a sensação de subir aquelas escadas e entrar por ali fora, num lugar em que apenas três semanas antes eu seria imediatamente detida. De um dia para o outro tudo mudou. Todas as referências mudaram. E ir á Prisão de Caxias e vê-la repleta de Pides, em vez de presos políticos.

Vivi em Espanha, onde fiz algumas disciplinas das quais consegui equivalência cá. Logo a seguir ao 25 de Abril entrei para a Administração Pública a convite de Maria de Lurdes Pintassilgo. Quando ela saiu, depois do 11 de Março, eu fui ficando nos gabinetes sucessivos até ao 6º Governo Provisório, quando fui saneada “á esquerda” com outras pessoas. Eu nunca me filiei num Partido. Também me lembro quando comecei a escrever. Escrevia poemas quando era nova, cheguei a publicar alguns – cortados pela censura – no Diário de Lisboa Juvenil – e depois do 25 de Abril escrevi artigos para o Jornal para o República – eu era amiga do Raul Rego – e só pensei no meu primeiro livro que saiu em 1987 – “Mulheres em Discurso”. Escrevi este primeiro livro porque em 1983 quando parti para Espanha – entretanto tínhamos feito um trabalho na Crónica Feminina com artigos sobre Planeamento familiar. A Susana Ruth Vasques escrevia artigos muito bons e nós oferecíamos artigos sobre planeamento familiar ou como tratar do seu bebé, etc. Com esse material e as cartas dessas mulheres que nos escreviam fiz esse livro “Mulheres em Discurso”, Ed. Imprensa Nacional. Escrevi o meu segundo livro em Espanha, enquanto escrevia artigos para o Diário de Notícias. Eu lia o El Pais todos os dias e li uma notícia – há coisas destas que nos fazem enveredar para um determinado rumo. Fernando Móran – que na altura era Ministro dos Negócios Estrangeiros – resolveu abrir os arquivos históricos do seu Ministério com um recuo de vinte e cinco anos”. Estávamos em 1985 ou 1984. E eu fiquei cheia de curiosidade em relação ao que lá estaria em relação a Portugal e Espanha. Durante um ano fiz pesquisa em material nunca antes visto. Quando voltei para Portugal, em 1986, e depois de vários anos, com o material acumulado publiquei “Portugal visto pela Espanha” e é claro que meti lá as histórias de mulheres. Quando voltei para Portugal, ainda trabalhei por pouco tempo na Comissão mas depois comecei a trabalhar para as Nações Unidas, para a Organização Mundial de Saúde, como consultora, no sentido de levantar problemas. Fui consultora em Moçambique em 1984 – um momento terrível. Em Portugal fui para o gabinete de Leonor Beleza, então Ministra da Saúde e aí dediquei-me ao Projecto Vida – relacionado com o consumo de droga. Apercebi-me que 80% dos toxicodependentes são homens. Porquê? Trabalhei quatro anos como secretária geral deste projecto. Anos muito interessantes, muito importantes, muito intensos. Sempre trabalhei muito e às vezes sinto um bocadinho de culpa em relação aos meus filhos mas tenho consciência de que lhes dei – e dou – o mais importante, exemplos de vida, de empenhamento. E ainda fui Presidente da Comissão para a Igualdade, estive lá quatro anos. Foi também um tempo muito importante, vivi o encontro do Cairo (1994), vivi o Encontro de Pequim (1995). Quando veio o Governo Guterres pus o meu lugar à disposição. E saí radiante porque já estava há nove anos em lugares de chefia. Pedi equiparação a bolseira, para escrever um livro. E escrevi dois livros “Os Poderes das Mulheres e os Poderes dos Homens” e “As Mulheres em Portugal na Transição do Milénio”.  Continuei com o meu trabalho de formação de formadores em África no âmbito da saúde reprodutiva chefiado pela Dra Maria da Purificação Araújo para pessoal de saúde, nos países de expressão portuguesa onde falava das questões da igualdade, lançámos muitas sementes, gosto muito de África. Foi um trabalho que durou dez anos e acabou porque as Nações Unidas – e muito bem – optaram por outra estratégia.

Eu sempre me interessei pelas questões ligadas à contracepção e sexualidade.

 

H.V. Como lidou com as diferenças culturais? Em África existem muitas culturas.

A.V. Claro. Em S. Tomé e Príncipe, por exemplo, é interessante que os homens mudam de mulheres mas as mulheres também mudam de maridos, embora elas sejam as responsáveis pelos filhos. Aliás sou amiga de uma ex Ministra da Saúde de S. Tomé, Dra Dulce Gomes, que é médica e ela criou lá uma instituição com o apoio de uma Instituição portuguesa a que estou ligada, a “Novo Futuro”[3] . Até em S. Tomé há crianças abandonadas o que é estranho.

A grande força de trabalho em Portugal são as mulheres. Os homens não se vêem a trabalhar. Vai-se a qualquer lado, ao Banco, às Finanças e só se vêem mulheres. O que é que os homens andam a fazer? Muitos são alcoólicos.

 

H.V.: O que acha desta polémica em relação ao aborto?

A.V. trabalhámos muito nisso e em mim há um bloqueamento. A minha posição é esta, como católica que desde o momento da concepção há uma vida em potência. Mas repugna-me saber que há mulheres que, com muito sofrimento, em 99% dos casos, resolvem interromper a gravidez, por razões muito pessoais. O que eu não posso admitir é que haja leis que mandem mulheres para a prisão por isso. Vai surgir para o ano, um trabalho meu que está a ser coordenado por Guilhermina Gomes sobre o anti-feminismo em que conto várias histórias entre elas a de uma abortadeira francesa que foi executada durante o Governo de Vichy. A maior penalização da mulher é o próprio aborto. Não é o caso de algumas, poucas mulheres irresponsáveis que interrompem a gravidez porque não lhes dá jeito, porque tinham férias marcadas ou algo assim. Mas não me compete julgar essas pessoas. Sei que são em número muito pequeno. Acho que não se deve fazer um aborto depois dos cinco meses e meio. É uma questão muito complexa e deve ser tratada como tal. Votei sim no 1º referendo sobre o aborto e neste referendo voltarei a votar sim. No 1º referendo não tomei uma posição pública porque há dez anos envolvi-me no Movimento “Nós Somos Igreja” que é um movimento de âmbito nacional que pugna por alterações na Igreja católica.

 

H.V.: Incluindo a ordenação de mulheres?

A.V. mais do que isso. O que pretende é uma Igreja diferente, sem a hierarquia pesada, sem o lugar do sacerdote como uma figura especial. Somos todos sacerdotes pelo baptismo. Jesus Cristo, nos Evangelhos, o único sacerdote vem abolir o sacerdócio como nós o conhecemos. Sacerdote é uma coisa pagã. Quando me dizem que a falta de padres é uma desgraça para a Igreja católica eu acho que quantos menos padres houver, melhor. Em S. João do Estoril há uma comunidade de três freiras, entre elas a irmã Elvira que transformou uma comunidade de imigrantes, de pessoas que vieram de barracas e deu-lhes dignidade: comida, ocupação, livros, etc. e na missa é um padrezinho que lá está, há um novo beneditino que é amoroso e que tem respeito pela comunidade mas que é um bocadinho infantil mas elas é que são importantes.

Este nosso movimento é mal visto pelas facções mais conservadoras da Igreja; eu tenho esse estigma de ser pró-aborto. Ninguém é a favor do aborto, toda a gente é contra o aborto mas o problema é mandar as pessoas para a prisão por abortarem

 

H.V.: E qual é a sua opinião, como católica, em relação ao casamento entre homossexuais?

A.V.  Sou totalmente a favor. Acho abjecta a campanha contra os homossexuais. Tenho um primo que vive com o mesmo homem há anos e anos e têm uma estabilidade que não encontro em muitos casais heterossexuais. Já tem 72 anos.  O que interessa é como vivemos a relação com os outros e o amor e respeito pelos outros. Sou a favor do reconhecimento pelo Estado de uma relação em que duas pessoas do mesmo sexo queiram assumir um compromisso mútuo como o casamento. Face à adopção, a minha atitude é a seguinte: deve ser primariamente em função da criança. A criança precisa de uma atenção única – não a de uma instituição que deve ser não permanente. O importante é o amor canalizado para a criança. Quantos casais heterossexuais não cumprem esse requisito? Se houver um casal de homossexuais que tenha esse tipo de amor, cuidado e atenção em relação a crianças, devem poder adoptar como os outros. Eu identifico, no meu próximo livro, três grupos que são os protagonistas do anti feminismo: os pensadores e os críticos nos séculos XIX e XX, a Igreja e as próprias mulheres, principalmente as mães que educam os filhos de maneira diferente das filhas.

 

H.V.: Porque há também uma responsabilidade cultural, atávica, das mulheres nesse anti feminismo…

A.V. Exactamente. E isso tem sido pouco assumido pelas feministas. Temos de identificar os nossos inimigos, mesmo que sejam mulheres. Temos de determinar o porquê da nossa ineficácia.

 

H.V.: Porque temos de saber como podemos reeducar-nos todos – homens e mulheres – para podermos ter liberdade, tolerância,

A.V. Respeito pelas diferenças

H.V. E para termos a capacidade para termos ideias próprias.

A.V. Em Portugal, há falta de sentido cívico, de ideia de comunidade. Os portugueses são de um individualismo doentio e os sinais estão em todo o lado. Cada um faz como quer e olha-se muito para o lado. Como é que não intervêm quando há violações, maus-tratos, etc. Somos muito mal organizados em termos de voluntariedade.

 

H.V.: A Ana não se sente enquadrada num “padrão” imposto pelos partidos… sendo feminista e católica…

A.V. Sim e fui, como disse, “saneada pela esquerda” – dispensada – logo de seguida convidada por três serviços do Estado, entre eles a Comissão da Condição Feminina, onde entrei em 1976 e aí trabalhei muitíssimo naqueles tempos fabulosos em que já a Comissão actuava como o chamado Feminismo do Estado – tínhamos condições de trabalho e apoio político. Pudemos fazer trabalho militante em que tínhamos de mudar todas as leis. Todas. A partir do dia em que se mudou a Constituição TUDO tinha que mudar. Foi um momento maravilhoso e fulcral da mudança do Código Civil – que era revoltante. A Leonor Beleza – ela foi a primeira mulher que foi convidada mal acabou o Curso de Direito a entrar directamente como docente (Assistente) da Universidade porque por exemplo a Magalhães Colaço[4] teve de se doutorar e lutar para se integrar no corpo docente da Faculdade de Direito. Quando faço conferências fora de Portugal e digo o que se passou cá no nosso País antes de 1974, as pessoas nem acreditam. Nos primeiros tempos fantásticos da Comissão da Condição Feminina, pessoas como a Regina Tavares da Silva, a Maria Reynolds de Souza, a Madalena Barbosa, a Isabel Romão, a Leonor Beleza, eu própria, fizemos um trabalho que era aliciante, nós éramos de facto militantes, não éramos apenas funcionárias. Toda a gente nesses lugares trabalha mesmo e os que não trabalham é porque são mal orientados pelas chefias.

 

H.V: Quer dizer que foi um momento em que foi possível por em prática, em campo, aquilo em que acreditavam e que tinha sido objectivo da vossa luta.

A.V. Mudámos as leis todas, a lei do Trabalho, da nacionalidade, o Código Civil, como já disse. As pessoas não pensam como a Lei é importante. É importantíssima. Porque mesmo que a Lei a certa altura já não seja adequada, as pessoas têm de a seguir. Um exemplo clássico é a que se refere ás crianças que nascem fora do casamento. No antigo Código Civil não herdavam igualmente. Agora mesmo que haja pessoas ultra reaccionárias que estigmatizem as crianças nascidas fora do casamento têm de obedecer à lei. E quando as pessoas se divorciam têm de obedecer à lei. Para mim, que não sou jurista, as leis são fundamentais. Se a casa jurídica não está arrumada os países não funcionam. Já trabalhei em Moçambique, Angola e S. Tomé e Príncipe e, para mim, o grande e dramático problema destes países é a ausência de Estado. A ausência de Estado é tão grave como “demasiado Estado”, que era o que existia nos países comunistas por exemplo. Se há um colapso das Instituições as pessoas tornam-se uns selvagens, como qualquer de nós. O ser humano é o pior dos animais.

 

H.V.: Mas nesse momento do início da Comissão da Condição Feminina, quando deitaram mãos à obra, o que é que encontrou, em Portugal?

A.V. O que é interessante – e que muitas pessoas têm estudado – é porque razão em Portugal os movimentos das mulheres são tão fracos? Antes do 25 de Abril, compreende-se. Havia algumas mulheres, normalmente dentro do Partido Comunista que lutavam pelos direitos das Mulheres mas não havia nenhuma corrente de pensamento e de vontade, nenhum movimento. E os homens ditos de esquerda – isto é os que eram anti-salazarismo – eram tão anti feministas como os outros. Mas pós 25 de Abril e até hoje, os movimentos feministas são muito fracos. As organizações ambientalistas, por exemplo, têm muito mais força em Portugal do que as organizações feministas porque os políticos têm medo das organizações ambientalistas e não têm qualquer receio das organizações de mulheres. E em Espanha vão para a rua e fazem manifestações de milhares de mulheres, mobilizam pessoas – homens e mulheres contra a violência doméstica, por exemplo. Porque é que nós não temos nada disso. Há falta de solidariedade entre as mulheres há falta de consciencialização por parte dos homens em relação a estes. Isto está estudado pelas Nações Unidas: quanto maior o desequilíbrio de poder entre homens e mulheres maior é o subdesenvolvimento.

 

H.V. E quanto à contracepção?

A.V. Na Comissão da Condição Feminina, nos primeiros tempos, trabalhei especificamente, com a Maria Reynolds de Souza, no desenvolvimento do planeamento familiar. Ainda não se falava em saúde reprodutiva. Educação para o planeamento familiar. Eu sou, como já disse, católica praticante mas sempre discordei da posição que considero anti-cristã, que afirma que certos métodos contraceptivos não podem ser usado. Mesmo em termos de justificação teológica os termos do Humana Vitae, (1968) a encíclica do Papa Paulo VI está mal justificada. Fizemos alguma pesquisa. O que é essencial é que sejamos responsáveis pelo nascimento dos nossos filhos. É a atitude que importa. Os contraceptivos obviamente iludem a Natureza. Muita gente que estuda estes assuntos tem a opinião que foi a partir dessa altura que a autoridade do magistério da Igreja Católica começou a desmoronar-se. Porque, na realidade, 90% de bons católicos, em total boa consciência, em algum momento da sua vida usa métodos anti concepcionais. Não talvez em África. A questão da Sida em África é tão grave e criminosa.

 

H.V. O que descobriu ao fazer pesquisa para este livro “As Mulheres Portuguesas vistas por estrangeiros”?

A: V. Um dos livros que refiro é escrito pela minha mãe. E foi um conjunto de pessoas – incluindo o meu marido, amigos, a minha filha – que coleccionaram livros de viagens e eu comecei a pensar que tinha material para investigação. E tiro o chapéu à Piedade Ferreira, que é a minha editora, e que tem uma intuição fantástica. A minha filha ajudou-me muito sob o ponto de vista teórico e li muitos livros de estrangeiros. O olhar dos estrangeiros não é a verdade histórica absoluta – até porque isso não existe – mas é um olhar que tem um distanciamento e se achamos algumas coisas estranhas e pensarmos bem, podemos tirar conclusões. Vemos que as mulheres portuguesas atravessam os tempos sendo muito fortes, muito capazes e simultaneamente muito desmerecidas muito desmunidas do poder, da educação. Dizer que as mulheres não trabalhavam. As mulheres portuguesas à parte os casos de alguma burguesia trabalharam sempre com grande energia e força.

 

 

1- “Em Lisboa a 31 de Dezembro de 1972 a polícia deteve 91 pessoas que haviam escolhido o altar de uma Igreja de Lisboa ( Capela do Rato) para meditar sobre sentido da Guerra em África.

2 - Dr Arlindo Vicente candidato do partido Comunista Português nas eleições presidenciais de 30 de Maio de 1956, tendo desistido a favor de Humberto Delgado  

3 - Associação de Lares familiares para Crianças e Jovens, Lisboa, fundada em 1996 www.novofuturo.org

4 - Professora Dra Isabel Magalhães Colaço –  1ª mulher portuguesa a douturar-se em Direito - 1926-2004

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2013 - BALANÇO

29.12.13

2013 é um gigantesco cemitério. 
Um ano de morte.
De pessoas, de ideias, de ideais, de convicções, de afectos.
Mortes demasiado próximas (a minha Mãe muito amada, Tia, amigos tão chegados) – dores inimagináveis. 
Mortes – como a de Nelson Mandela.
Mortes de milhares (milhões?) de pessoas, vítimas da guerra, de confrontos, de desastres, de catástrofes naturais, de crimes. Quanto às "minhas" mortes, ninguém tem nada com isso, faço o meu luto, melhor ou pior, em privado. Mas as outras mortes, as de pessoas que nunca conheci, são as que merecem um comentário, perseguem-me e afligem-me porque são o reflexo de algo tenebroso e feroz que nos ameaça. Porque nada acontece sem uma causa: existem tumultos – ao longo deste ano vimos, diariamente, confrontos violentos em cidades, em todo o mundo – porque as desigualdades se intensificam fruto de políticas selvagens que descriminam e separam as pessoas por razões económicas, sociais, políticas, religiosas. (Não me venham dizer que vivemos em paz porque não é verdade). As catástrofes naturais são cada vez mais violentas mas tal não muda o rumo das políticas dos países cujos governantes desdenham das urgentes soluções para resolver alguns dos mais prementes problemas ambientais. A criminalidade aumenta devido à fome e à pobreza que grassam nas mais prósperas sociedades onde as políticas dos últimos anos têm vindo a minar a educação e a saúde, os dois grandes bastiões contra a miséria. A diplomacia – que já foi tarefa de príncipes – de nada serve para resolver conflitos que se arrastam há anos e os serviços secretos dos países mais avançados tecnologicamente são uma anedota trágica. 
Os grandes grupos económicos sustentam-se na corda bamba, recusando-se a mudar de rumo e tomando decisões cada vez mais drásticas e obviamente lesivas do bem comum. Os negociantes de armas, os extremistas, os assassinos, os que se regozijam com a devastação que criaram, e continuam a criar. tiveram um grande ano. 
2013 foi um ano tumular, frígido, devastador. Apenas o Papa Francisco – sobre quem escreverei noutra altura e que já deve estar a incomodar muitos "bons católicos" porque veio desafiar as supostas boas acções e as práticas hipócritas – é pessoa que merece ser mencionada, a par de alguns artistas e desportistas. De resto, 2013 não trouxe nada a não ser o extremar do Mal – o que talvez nos faça ganhar uma consciência mais viva e mais activa. É impossível continuarmos a arrastar connosco os restos putrefactos da iniquidade, da deslealdade, da traição e da indiferença, da estupidez e da malquerença. 
Fico-me com a ideia de que a morte também implica renovação, espaço para novas vidas, novas ideias, novos rumos. Significa que é necessário um novo ciclo, uma redenção. Em cada um e para os outros. Sem lamechices lunáticas, sem sentimentalismos coxos, sem preconceitos lamacentos, sem ódios provincianos e inúteis.

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ACREDITAR. Um verbo que se tornou "viral". Acreditar é uma espécie de talismã, um baralho de cartas marcadas e guardadas na manga de umas tantas pessoas exaltadas que "não acreditam em nada". Diz-se muito por aí: "eu cá, não acredito em políticos", ou "ninguém acredita no governo" (vide Pacheco Pereira, recentemente) como se o exercício da política fosse uma religião, e os homens e mulheres da política estátuas de santos milagreiros. Parece que tudo se resume a esta dicotomia do acreditar/não acreditar. 

Suponho que - mas posso estar enganada - "acreditar" esteja ligado à Fé e seja uma prerrogativa dos que crêem em algo superior, divino, do pelouro da metafísica. Algo inexplicável, portanto. Acreditar no que depende das acções de mulheres e de homens mais do que banais, não é nada, para mim. Não é racional. Não é uma atitude baseada na informação, no estudo, na pesquisa, no pensamento. Não é um exercício que obtenha resultados. Não é um trabalho mental de quem pratica a vasta "tradição" do pensamento, da filosofia.

Para além disso, acredita-se muito (ou não) mas exige-se pouco. Quando as coisas correm para o torto, deixamos de "acreditar" e atiramos a toalha ao chão. Quando um clube de futebol vai jogar, os adeptos "acreditam" na vitória. Se o clube perde, deixam de "acreditar" nos treinadores, nos jogadores, nos árbitros, etc. O deixar de "acreditar" leva a outro estádio, o da "desconfiança": as pessoas passam a "desconfiar" de tudo e de todos, enredam-se em teorias da conspiração, vivem em sobressalto, têm medo. É sempre preferível "acreditar" – ou "não acreditar" – porque é um exercício que exige pouco esforço e fica sempre bem.

Se não acontece aquilo em que acreditam, as pessoas continuam a acreditar (ou não), de preferência sem mexerem uma palha. Algumas pessoas acham que acreditam com força e bem, acumulando culpas por não terem acreditado com força suficiente, ou seja, "acreditam" que houve falhas na sua "fé" ou, rapidamente, colocam o ónus das derrotas em algo ou alguém exterior a si próprios, num passe de mágica que os "purifica". Os jornalistas passam a vida a fazer perguntas do género: "acredita que vai haver um 2º resgate? Acredita que o Tribunal Constitucional vai vetar isto ou aquilo? Acredita que o deficit vai subir/baixar? Acredita que este/aquela político/a é corrupta/o?

Somos realmente um País de fés, de milagres e de ilusionistas. Não admira que os aldrabões triunfem, que os vendedores de banha da cobra façam fortunas. Foi por "acreditar" em gente como Passos Coelho ou Portas ou Cavaco que estamos nesta embrulhada. Ao fim e ao cabo, só precisaram de fazer com que as pessoas "acreditassem" neles (as).

E reparem: quando as pessoas deixaram de "acreditar", ficou tudo exactamente na mesma. 

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CONFISSÕES I

13.12.13

Confissões I

Tinha uns dez, onze anos, quando decidi enveredar pela senda do Crime.

As senhoras da Mocidade Portuguesa percorriam o Liceu, aliciando-nos e prometendo fazer de nós (de mim) uma leal e robusta servidora da Pátria, uma saudável procriadora de mancebos e uma excelente dona-de-casa, obediente e fiel a um marido que certamente já se perfilava num horizonte "glorioso", decidido a oferecer-me óptimos electrodomésticos e uma vida recatada e cristã.

Mas eu não estava interessada.

Aquele "S" no cinto da fardamenta – duro, constrangedor, sinuoso e perverso – causava-me um certo incómodo, não explicável, uma vez que, como devem calcular, era muito ingénua e nada, mesmo nada, politizada.

Os meus pais, levemente pressionados, perguntaram-me a razão da recusa; eu fiquei na minha, fechei-me em copas e o assunto morreu por ali.

Em vez disso, tornei-me chefe de um gangue.

Em Lourenço Marques ( que hoje se chama Maputo) passava-se pouco tempo dentro de casa. As ruas eram largas e pacatas, os ruídos abafados pelas acácias luxuriantes. Estava calor. Nós, os miúdos, andávamos à solta. As aulas começavam às sete da manhã e o toque de saída era ao meio-dia, quando corríamos para a liberdade, para a piscina ou para a praia.

(Por baixo do uniforme da escola levava o fato-de-banho). Nadávamos e preguiçávamos ao sol. Acocorávamos – nos junto aos pescadores a vê-los tratar das redes ou a pintar os barcos. As alforrecas eram uma praga e quando acontecia ser atacada, um dos rapazes urinava docemente sobre a minha pele vermelha e irritada, trazendo um abençoado alívio.

As tardes alongavam-se, infinitamente. Havia pouco que fazer. O tédio apoderava-se de nós. A ideia de formar um gangue pareceu-nos aliciante. Eu lia muito, lia demais, tinha a cabeça cheia de aventuras e estava firmemente convencida que só a vida contada nos livros valia a pena ser vivida. Fizemos pactos de sangue – doía como o diabo abrir um sulco na mão com uma lâmina ferrugenta – e adoptámos nomes índios. Fui, durante uns tempos, a única rapariga do grupo, mais tarde destronada pela Nono, que era bem mais rápida e valente do que eu.

Não posso dizer que o gangue fosse sofisticado ou razoavelmente produtivo. As nossas acções, inventadas no momento, sem estudo estratégico preliminar, tinham a fraca dimensão da nossa (i)maturidade: entrávamos em casa de pessoas e roubávamos o que estava à mão - pastilhas elásticas, bolachas, coca-colas; corríamos a cidade de bicicleta, passando tangentes a velhinhas (como eu sou, agora); invadíamos os cinemas e instalávamo-nos sem pagar; descíamos até à Baixa e ocupávamos as pastelarias, onde nos empanturrávamos com bolos; dávamos "beijos de língua" uns nos outros; aterrorizávamos (pensávamos nós!) polícias, guardas e putos queixinhas; desobedecíamos aos nossos pais; atirávamos em latas, com a pressão de ar; descíamos as "barreiras", escorregando entre cactos e ervas daninhas; andávamos à pancada só pelo gosto a sangue e pó; subíamos às árvores e mandávamos fisgadas às pessoas que passavam. Também salvávamos animais abandonados e incluíamos os miúdos negros, filhos dos criados que trabalhavam nas nossas casas, nas nossas brincadeiras. Como bons bandidos, tínhamos uma lado filantrópico. E achávamos que estávamos a fazer uma grande coisa!

(Um parêntesis para recordar que, em Moçambique, não havia "apartheid" como na África do Sul, o que era aproveitado hipocritamente pela administração colonial como uma espécie de ascendente moral sobre os nossos vizinhos. No entanto as fronteiras entre brancos e negros estavam marcadas a traço grosso e eram bem visíveis. Nós, miúdos, sem conhecimento de causa, limitávamo-nos a ser "contra", a fazer algo que irritava ou incomodava as mentes bem pensantes e as figuras da autoridade.)

A minha mãe punha-me regularmente de castigo. Os nossos pais davam-nos sovas valentes. Gabávamo-nos muito de tudo aquilo.

Foi um tempo glorioso. Dava-me gozo mandar mas não quando me desobedeciam. Tinha de dar ordens àqueles miúdos ranhosos que só queriam dormir a sesta e enrolar cigarros com o tabaco de cachimbo que eu roubava ao meu pai; não pensavam verdadeiramente em nada. 

Não percebiam que tinhamos uma Missão.

(Rapazes!) 

Fartei-me depressa. 

Foi a primeira e a última vez que fiz parte de um grupo.


Helena Vasconcelos, Setembro, 2013

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Marguerite Duras e o Amor sem Limites.

Surto agudo de nostalgia.

Um sábado com saudades dos cineclubes.

Envenenamento com filmes da Duras. 
India Song. Son Nom de Venise dans Calcutta Désert.
Duras que viajou sempre em direcção a essa "Barragem contra o Pacífico". 

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 AS BOAS PESSOAS


“…Somos boas pessoas. Somos mesmo muito boas pessoas. E não nos parece correcto que …”

 





A quarentona com o cabelo cheio de laca está claramente irritada e a voz esganiça-se-lhe, enquanto gesticula com a mão sapuda. Interrompe a sua oratória veemente quando me levanto e dou uns passos pela sala. O da pasta preta pousada no chão junto aos sapatos, sentado na ponta do sofá, não tira os olhos dos papéis desarrumados, presos numa prancheta. É um homem novo,  entediado e impaciente. Esperam que eu diga alguma coisa mas não lhes faço a vontade.

A mulher encolhe os ombros.

Saio da sala e oiço-os a sussurrar.

 

Ainda ontem estivemos sentados, debaixo do guarda-sol. No regresso da escola passo lá por casa e encontro-o no pátio das traseiras, ou na sala escura. Conversamos e dormitamos com abandono, na preguiça do meio-dia. Vejo as suas mãos, bonitas, expressivas, tisnadas pelo sol, as veias salientes, com manchas escuras, abandonadas placidamente no colo. São as mãos de um homem vigoroso de meia – idade. Ninguém lhe dá os oitenta e não sei quantos anos.

 

O tio Emílio é a única pessoa da família de quem gosto. Obviamente, ninguém da família gosta do tio Emílio. A aritmética do clã funciona assim: quando eu somo, eles subtraem, quando eles multiplicam, eu divido – e vice-versa.

- “O tio Emílio é um “velho biltre” um “mação, um huguenote”. O meu pai, homem responsável e médico respeitado, seu cunhado e inimigo figadal, é pródigo nos epítetos: Na sua mente está gravada a imagem ansiada de um Emílio morto e enterrado, com um colar de dentes de alho ao pescoço e uma estaca cravada no peito. Só para ter essa felicidade seria capaz de quebrar o julgamento de Hipócrates.

- “O tio Emílio não é socialmente aceitável” – declara o meu irmão mais velho, sempre ansioso por manter o seu território livre de quem eventualmente possa estragar-lhe a imagem de burguês mediano e irresoluto. “

- O Emílio é um irresponsável, adúltero, mentiroso e trapaceiro” – acode Matilde, a ex mulher que faz divinamente o papel de despeitada e que não repara – ou não quer reparar – que os mesmíssimos adjectivos se podem aplicar a ela própria.

- “O tio Emílio não merece o teu respeito” – afirma convictamente a minha mãe, a politizada da família – “…não é ideologicamente coerente. Lutou contra o fascismo, é bem verdade mas nunca pertenceu a nenhum partido, não se compromete. Desta forma não se conseguem vitórias. Principalmente quando precisamos, cada vez mais, de quem combata a direita, conscienciosamente."

 

A minha avó era uma romântica que sonhava constantemente com aventuras. Ficou em casa a tratar dos inúmeros filhos com um marido que foi um modelo de virtudes e um maçador impenitente. A este filho, o preferido, deu o nome do seu herói, Emílio Salgari, o escritor de Verona que, tal como ela, pouco viajou, imaginou tudo mas fê-la percorrer os Mares do Sul e o Oeste Selvagem com a força das palavras impetuosas, que ela lia alto para que o som reverberasse, magicamente, na sua cabeça, conjurando os odores, as temperaturas e as agruras das aventuras sem regresso. O tio Emílio faz justiça ao seu glorioso nome: é um anarquista irrequieto, um amante arrebatador, um pirata dos oceanos, um viandante incansável, um espertalhão que soube conciliar as oscilações de um mundo sempre em mudança com as suas crenças pessoais. Continua com uma saúde invejável, vigilante como uma ave de rapina, lúcido e sábio como Merlim. Com ele, a Natureza tem sido justa, num desses lapsos que acontecem, de vez em quando, mesmo na mais cruel das confrarias.

Para o Emílio não existem verdades absolutas. Entretém-se a questionar tudo com uma incansável firmeza, muito pouco apreciada por quem o conhece. Na Universidade, os alunos amavam-no pela sua excentricidade mas temiam a feroz argumentação que os fazia sentir perdidos, como se estivessem no meio do mar num barco a remos – sem remos.

Os deuses do tio Emílio são Bakunine, Burroughs e Bukowski, os três Bs da “bondade”, “beleza” e “briga” – em dias mais expansivos, junta-lhes Bellow e Beckett – e embora eu não partilhe todos os seus entusiasmos, gosto de o ouvir discorrer sobre as metamorfoses, sobre o estudo dos lepidópteros, sobre o crânio de Ofélia e a misantropia de Montaigne, enfim sobre o inesgotável absurdo da vida.

O tio Emílio adora histórias e anedotas, principalmente piadas com velhos e velhas. Para ele a velhice é uma anedota, uma partida de mau gosto. Ri-se. E cantarola: “ A vida é uma historieta contada por um idiota…” 

“…cheia de som e fúria, sem qualquer significado…” respondo, obedientemente.

“Ámen”, apressa-se a retorquir com um sorriso matreiro.

 

Tanto o meu pai como a minha mãe, um por ser católico, outra por ser comunista gostam de dizer, de afirmar, de demonstrar, de insistir com toda a gente que se deve viver desta ou daquela maneira. Seja a mando de Deus, seja a mando do Partido, existe um caminho bem alcatroado, sinalizado e com belas faixas brancas a delimitá-lo. Os atalhos, os caminhos serpenteantes e as auto-estradas intermináveis do Emílio não lhes oferecem a mínima confiança.

 

. O Emílio teve um filho que morreu em África. Na Guerra Colonial. “Um herói”, dizem, na família!

“Um idiota” diz o Emílio, de rosto cerrado, “um perfeito idiota”.

Já lá vão uns quarenta anos.

 

As histórias e anedotas sucedem-se em catadupa sobre os seus temas preferidos: casas de repouso, (“que raio de designação! Quem é que quer repousar, nesta altura?”), cemitérios, funerais, sexo senil, Viagra, roupa interior, humilhações. Eu rio-me, enquanto ele se embrenha alegremente na sua escatologia pessoal, no seu teatro do absurdo: faz caras, esgares, fala com a respiração entrecortada – “como os velhinhos” – ensaia estertores de morte, faz gestos obscenos, dança à minha frente com uma agilidade surpreendente. Para ele, a morte é um “parque de diversões noutra dimensão”.

(“Por favor não deixes que me reduzam a cinzas. Quero dançar com as minhocas”)

É como estar a ver um filme dos Monty Phyton com uma mãozinha do Tarantino.

 

A casa do tio Emílio é um rés-do-chão atulhado de livros num edifício vulgar, em Lisboa, construído nos anos quarenta. Agora é considerada zona nobre, as rendas subiram e o invisível e ameaçador senhorio deseja intensamente que o tio Emílio morra com a brevidade que se impõe em matéria tão sensível.

O pátio das traseiras é o nosso poiso favorito. Todos os vizinhos e vizinhas dos prédios do quarteirão nos podem ver, basta assomar às janelas. O que acontece com frequência.

Gatos dos telhados, de todas as cores e feitios, vêm ronronar e esfregar-se nas nossas pernas. Os pátios das outras casas mostram o cuidado dos seus habitantes: plantas, vasos, estrados, toldos, objectos inúteis. No pátio do meu tio só há duas cadeiras de plástico, um prato com comida e uma taça com água para os gatos, e uma grade de cervejas eternamente reabastecida e utilizada para o propósito bem prático de apoiar os pés. O guarda-sol que lhe comprei, para termos alguma privacidade, está grotescamente partido porque ele se esquece de o fechar, em dias de temporal. O pátio do tio Emílio não tem grande aspecto. Quando chove, ervas daninhas irrompem por todo o lado, nas fissuras das lajes partidas e cheias de musgo escorregadio que, no verão, ganham uma cor acinzentada e escaldam. Os vizinhos não gostam.

Espreitam cá para baixo, fazem cara feia e depois fecham as janelas com estrondo. O minimalismo do tio Emílio complica-lhes com os nervos.

 

Foram os vizinhos que chamaram a Segurança Social. O tio Emílio leva um rádio para o pátio, põe a cassete de Zorba, o Grego e dança todo nu, enquanto bebe e canta. As queixas sucedem-se. Ontem, quando tocaram à campainha, Emílio abriu a porta e três matulões saltaram-lhe em cima e começaram a espancá-lo.

É fácil bater num velho de oitenta e muitos anos.

É canja dar cabo de um velho insuportável, barulhento e sozinho. Até tem graça entrar por ali dentro e desatar aos pontapés e aos murros a um palerma de um velho.

Toda a gente sabe que os velhos vivem à conta e não servem para nada. Este velho devia estar sossegadinho dentro de portas em vez de dar espectáculo e de chatear as pessoas.

Este velho de merda nem tem nada de jeito, só livros e papel, o cabrão! Um velho mariconso que se despe em frente de gente de bem é porque quer levar porrada da grossa!

(Mais uns minutos e ainda lhe sacamos a televisão e o telemóvel.)

 

Mas as coisas não correram como previstas: o corpo rijo do tio Emílio, besuntado de Pizbuin, escorregou-lhes das patorras e escapou-se como uma enguia para o quarto. Quando arrombaram a porta ele estava à espera com uma espada de samurai numa mão e um revólver Colt Anaconda, na outra. Atirou para o ar e avançou de espada em riste. Rasgou um braço ao mais afoito, ignorou o que se atirou para o chão a chorar e perseguiu o terceiro pela rua acima com a espada em riste. A vizinhança acorreu, com o firme propósito de o lincharem. Chegou o 112. Mas o tio Emílio desaparecera na noite.

 

As “boas pessoas” na minha sala têm a certeza de que ele vai ser preso. As pessoas boas na minha sala estão indignadas. Querem que o tio Emílio seja “tratado”. Querem vigiá-lo. Querem o bem dele. Querem recuperá-lo para a sociedade. Querem que ele seja um velhinho bonzinho e sossegadinho num cantinho do asilo psiquiátrico. São pessoas muito boas e muito sérias, com certezas muito enraizadas.

Volto da cozinha e digo com firmeza que não sei do tio Emílio nem quero saber. Peço-lhes educadamente que se vão embora e me deixem em paz.

 

Fecho a porta nas costas das boas pessoas, da senhora da laca e do rapaz de preto. Devolvo-os à rua onde vão continuar à procura do tio Emílio. Subo as escadas e entro no meu quarto. O tio Emílio está refastelado na minha cama, em cuecas e com as botas calçadas, a fazer zapping pelos canais pornográficos. O cão dorme encostado a ele.

Rio-me entre dentes e fecho a porta sossegadamente. Entendemo-nos, eu e ele. O sofá da sala espera-me. Sabe-se lá por quanto tempo.

 

Helena Vasconcelos

Dezembro, 2012.

 

 

The Good People

Helena Vasconcelos

 

“We are good, decent people. We really are. And it doesn’t seem fair…”

The woman in her forties, mottled hair tangled and stiff with hairspray,  is clearly annoyed and her voice rasps while she waves aimlessly her chubby pink hand in the air. I get up, walk across the living room, and she stops her heated rant. The man sitting on the edge of the couch, with the black briefcase standing like a wall on the floor next to his blacker shoes, doesn’t avert his eyes from some papers, randomly stuck on a clipboard. He is still young, dishevelled, bored and impatient. They wait for me to say something, but I don’t comply.

The woman shrugs.

I leave the room and hear them whispering.

 

Yesterday we were sitting under the sun, barely protected by a dilapidated  umbrella . I always stop by his house on the way back from school, and find him in the backyard or in the dimmed living room. We talk and slumber with detachment, in noon’s laziness. I marvel over his hands, peacefully abandoned in his lap, tanned, expressive, soft veins bulging, beautifully tarnished by dark spots.  These are the hands of a vigorous man. No one will guess he’s almost ninety.

 

Uncle Emilio is the only person in the family whose company I appreciate. It’s obvious that no one in my vast and complex family likes Uncle Emilio. The tribe’s math works like this: when I add, they subtract; when they multiply, I divide – and vice versa.

Uncle Emilio is an “old scoundrel”, a “freemason", a "Huguenot”. My father, a responsible man and a respected physician,  lavish in epithets applied to his brother-in-law and sworn enemy. In his mind the yearned and welcomed image of a dead and buried Emilio, with a garlic cloves necklace strung around his neck and a stake driven through his heart is embedded and cherished. He could easily break his Hippocratic Oath, just to indulge himself.

 

“Uncle Emilio is not socially acceptable”, says my older brother, always anxious to keep his territory free from people who can eventually ruin his vacuous image of middling, soft, lame and undecided bourgeois.

 

“Emilio is irresponsible, an adulterer, a liar and a cheater”, retorts Matilde, his former wife. She plays divinely the role of spiteful spouse, who doesn’t notice – or doesn’t want to notice – that the very same adjectives describe her beautifully.

 

“Uncle Emilio doesn’t deserve your respect”, my mother, the family’s politician, says convincingly, “... he is not ideologically coherent. He fought against fascism, I give you that but he came dangerously close to the centre. He never belonged to any party, doesn’t commit. That way you won’t win anything. Especially now, when we move towards an increasingly frightening conservatism.”

 

My grandmother was a romantic, who dreamed of constant adventures. She stayed home taking care of the countless children she had with a husband who was a paragon of virtue and an unrepentant bore. To that son she gave the name of her hero, Emilio Salgari, the writer from Verona who, like her, travelled little, imagined everything, and made her wander through the South Seas and the Wild West with the strength of the words she read aloud so the sound would rebound magically in her head, summoning the smells, the temperatures, and the hardships of escapades without return. Uncle Emilio does justice to his glorious name: a restless anarchist, a ravishing lover, an ocean’s privateer, a tireless traveller, a smart guy who knew how to juggle the swings of an ever changing world. As watchful as a bird of prey,  rational and wise as Merlin, strong and restless as a leopard, he is the quintessence of  man. Nature has been fair to him, one of those slips that happen once in a while even in that merciless conjunction.

For Emilio there are no absolute truths. He enjoys questioning everything with a unremitting sturdiness, little appreciated by those that surround him. At college, the students loved him for his eccentricity, but feared his fierce reasoning that made them feel lost, paddling in the middle of the vast ocean in a rowboat – without oars.

Uncle Emilio’s gods are Bakunine, Burroughs and Bukowski, the three B's of “bounty”, “beauty” and “brawl” – in more enthusiastic days, Bellow and Beckett join the highs of Olympus  –  and although I do not share his eagerness, I like to hear him talk about Ovid’s metamorphosis, the study of the Lepidoptera, Ophelia’s skull and Montaigne’s misanthropy, all the infinite questions and puzzles that form the inexhaustible absurdity of life.

Uncle Emilio enjoys telling stories and anecdotes, especially jokes about old geezers, men and women. For him, old age is just a silly game of the poorest taste. He laughs. And hums: “Life is a tale. Told by an idiot...”

“... full of sound and fury, Signifying nothing ...”, I reply willingly.

“A - men”, he rejoins hastily with a sly smile.

Both my father and mother – one for being Catholic, another for being a communist – like to declare, to demonstrate, to insist that everyone should live this or that way. Following the call of God, or the bidding of the party, there is a well tarred road, flagged and surrounded by beautiful white strips. Emilio’s shortcuts, detours  and fast highways don’t appeal to them, not in the least.

 

Emile had a son who died in Africa. In the Colonial War.

“A hero!”, says the family.

“An idiot”, says Emilio, his face clenched, “a perfect idiot”... It’s been over forty years.

 

The stories and anecdotes ensue in a flurry of his favourite subjects: rest homes, (“what the hell of a name! Who wants to rest, at the time of life?”), graveyards, funerals, senior sex, Viagra, lingerie, humiliations. I laugh, while he burrows through his theatre of the absurd: he grimaces, speaks with a ragged breath – “like the old guys” – rehearses death throes, makes obscene gestures, dances, drinks. For him, death is an “amusement park in another dimension.”

 

(“Please don’t let they reduce me to ashes. I want to convey with the worms”.)

 

It’s like watching a Monty Python’s movie, with a little help from Tarantino.

 

Uncle Emilio’s apartment is in Lisbon, a ground-floor littered with books in an ordinary building from the forties. Now it is considered an affluent area, rents increased and an invisible landlord wishes acutely that Uncle Emilio dies at his earliest convenience as imposed by such a sensitive matter. The backyard is our favourite haven. All the neighbours can see us from the buildings in the block, they just have to peep through their windows. This happens often.

 

Roof cats of all colours and shapes come purring and rubbing against our legs. The courtyards of the other houses show the care of their inhabitants: plants, pots, decks, awnings, useless objects. In my uncle’s yard there are only two broken plastic chairs, a plate of food and a bowl of water for the cats, and a crate of beer eternally replenished and used to support our feet. The umbrella I bought him to give us some privacy is a disgrace, looks like a scarecrow, because he forgets to close it on stormy days. Uncle Emilio’s yard doesn’t look that good. When it rains weeds erupt everywhere, between the cracks in the broken mossy and slippery slabs. In the summer they become grey and overheated. The neighbours don’t like it. They look down, they grimace and then shut the windows with a bang . Uncle Emilio’s minimalism gets on their nerves.

 

It was the neighbours who called Welfare. Uncle Emilio’s takes a radio-recorder to the yard, inserts a cassette of the soundtrack of Zorba, the Greek and dances around naked, drinking and singing. The complaints ensue. Yesterday, when the bell rang, Emilio opened the door and three thugs jumped on top of him and began beating him up. It’s easy to beat up an old man. It’s a children’s game to do away with an unbearable, noisy and lonely old guy. It’s great fun barging inside the house, and start kicking and punching a fool. Everyone knows that old people live from charity and are good-for-nothing. That old geezer should stay quietly indoors, instead of giving a show and annoying people.

"This old shit is a nobody, just books and papers, the motherfucker! An old fag that undresses in front of good people, is someone who wants his ass kicked!"

 

(A few more minutes, and we can take his television and mobile phone.)

 

 But things didn’t go as planned: Uncle Emilio’s tough body, smeared with Pizbuin, slipped from their huge hands and he escaped like an eel into the bedroom. When they broke down the door he was waiting for them , shouting like a raged Rambo with a samurai sword in one hand, and a Colt Anaconda revolver in the other. He shot into the air and moved forward, sword in hand. He teared the arm of the most undeterred, ignored the one who threw himself to the floor crying, and chased the third up the street with his sword drawn up in the air like some crazy monster from another planet. The neighbours appeared and rounded, ready to lynch him, when the emergency team arrived. Uncle Emilio had already disappeared into the night.

 

The “good people” in my living room are certain that he will be arrested. The good people in my living room are outraged. They want Uncle Emilio to be “looked for good”. They want to watch him closely. Naturally it is for his own heavenly good hey . They want to make a good man out of him, a good citizen. They want him to be a nice old man, a peaceful old man in a corner of a nice, smelly asylum. They are very good people, very serious people, with certainties well ingrained.

 

I return from the kitchen and say adamantly that I don’t know were Uncle Emilio’s might be, nor do I wish to know. I ask them politely to get out and leave. They do it, they have no other choice.

 

I close the door on the back of the good people, the lady with the hairspray and the lad with the black suitcase. I return them to the street, where they will continue searching for Uncle Emilio. I climb the stairs and walk into my bedroom. Uncle Emilio is lazily sprawled on my bed in his underwear and boots, zapping furiously through the porn channels. The dog is asleep leaning against his thigh.

I laugh softly and shut the door quietly. We understand each other, me and him. The living room couch waits for me. Who knows for how long?

 

December, 2012

Translated from the portuguese by Maria João Freire de Andrade

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A 28 de Agosto de 1963, Martin Luther King Jr., em representação do SCLC ( Southern Christian Leadership Conference), foi um dos líderes dos "Big Six" - movimentos e organizações pró Direitos Civis - que organizaram a célebre Marcha em Washington exigindo trabalho e liberdade para todos.

Publico esta foto porque creio que vem a propósito. E porque nos

conta uma longa história: a da opressão, a do sofrimento, a da esperança, a da resistência, a da solidariedade. O sonho de King não se tornou uma realidade perfeita mas abriu o caminho, estabeleceu as metas e é um exemplo para todos. Não me quero esquecer de toda esta gente que mudou o mundo para melhor.

Foto: reunião de escravos em 1916: Lewis Martin, 100 anos; Martha Elizabeth Banks, 104 anos; Amy Ware, 103 anos; Rev. Simon P. Drew, nascido livre. Cosmopolitan Baptist Church, 921 N Street N.W. (Shorpy). Estas senhoras e estes senhores não viveram o suficiente e não chegaram a ver a impensável mudança. Mas foi a pensar neles que Martin Luther King Jr fez toda a diferença.

 

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Sempre gostei de Margaret Atwood, a romancista, poeta, crítica literária, ensaísta e activista ambiental canadiana que ganhou enorme notoriedade com "Diário de Uma Serva" (1985), recentemente reeditado em português, com o qual ganhou o primeiro de muitos prémios. ("O Assassino Cego", um dos meus livros preferidos ganhou o Booker, em 2000 e espero por "MaddAddam" (2013) em português, o último romance da trilogia "Oryx and Crake".

 A mulher que afirma convictamente que "a estupidez está ao mesmo nível do Mal se considerarmos os respectivos resultados" é autora de duas dezenas de livros de poesia, de livros para crianças, de librettos para óperas (rock), de guiões para televisão. É ainda, uma conferencista memorável com intervenções contundentes no âmbito de vários assuntos - o ambiente, as dívidas dos países soberanos, a religião, a ética, a escrita, a literatura…

Aos 74 anos, é assim que reflecte, no sentido literal, sobre a idade.

Nota: Primeiro no original, o poema está, de seguida, em português, canhestramente traduzido por mim. 

 

Daguerreotype Taken in Old Age
Margaret Atwood 

I know I change
have changed

but whose is this vapid face
pitted and vast, rotund
suspended in empty paper
as though in a telescope

the granular moon

I rise from my chair
pulling against gravity
I turn away
and go out into the garden

I revolve among the vegetables,
my head ponderous
reflecting the sun
in shadows from the pocked ravines
cut in my cheeks, my eye-
sockets 2 craters

among the paths
I orbit
the apple trees
white white spinning
stars around me

I am being
eaten away by light

 

 

 

Daguerreótipo em idade antiga

 

Sei das mudanças, sim

Sei que mudei

 

A quem pertence este rosto inexpressivo

Tristonho e largo, redondo

Suspenso no papel

como se avistado num telescópio

 

uma lua granulosa

 

Levanto-me da cadeira

Repudio a gravidade

Viro-me

e saio para o jardim

 

Revolvo os vegetais

A minha cabeça pesada

A reflectir o sol

Sombras nas cavadas ravinas

Abertas nas minhas faces, nas

Duas crateras dos meus olhos

 

Entre os caminhos

Traço a minha órbita

As macieiras brancas

Brancas estrelas

Revolteando em meu redor

 

A ser devorada

Pela luz.

 

 

 

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As mulheres de idade têm sido, até há pouco tempo, muito mal tratadas. Basta recordar ( e voltarei a referir esta questão ) que toda a iconografia dos contos tradicionais remete para a imagem das "bruxas"  como mulheres velhas e horrendas. Reparem só na eternamente chata Branca de Neve, figura central desse conto tão cheio de sinais exteriores de profunda incorrecção : as meninas são bonitas, boas, puras e desejáveis; as mulheres mais velhas, quando começam a perder o seu bom aspecto, tornam-se más, cruéis, viciosas e horrendas. 

Quanto aos homens, pelo contrário, envelhecem com dignidade: por exemplo, Merlim, o sábio, com as suas belas barbas e cabelos brancos é uma figura imponente e majestosa e não repugnante ou ameaçadora.

Para ilustrar esta ideia deixo-vos com as referências a um conto de Clarice Lispector, cheio de desesperada ironia e cruel sabedoria. Tudo acontece em torno da personagem com o estranho nome de Sr.ª Jorge B. Xavier, a qual, com os seus setenta anos, ainda se deixa embalar pela música do (então jovem) Roberto Carlos. E sozinha, pela calada, dá livre curso às suas fantasias amorosas. No entanto, ao olhar-se ao espelho, acha-se velha. Escreve Clarice:

"Examinou-se ao espelho para ver se o rosto se tornara bestial sob a influência de seus sentimentos. Mas era um rosto quieto que já deixara há muito de representar o que sentia. Aliás, seu rosto nunca exprimira senão boa educação. E agora era apenas a máscara duma mulher de setenta anos. Sua cara levemente maquilhada pareceu-lhe a dum palhaço. A senhora forçou sem vontade um sorriso para ver se melhorava. Não melhorou."

 

A Sr.ª Jorge B. Xavier repara nas discrepâncias entre o seu aspecto exterior e o que sente :

"Por fora – viu no espelho – ela era uma coisa seca como um figo seco. Mas por dentro não era estorricada. Pelo contrário. Parecia por dentro uma gengiva húmida, mole, assim como gengiva desdentada."

 

Para a Sr.ª Jorge B. Xavier o sexo, o erotismo ainda não se volatilizou do seu corpo. Mas na vida, tal como na literatura, as mulheres quando envelhecem têm tendência a tornar-se "invisíveis". É isso que acontece à Sr.ª Jorge B. Xavier.

Mas Lispector continua, implacável:

"Então procurou um pensamento que a espiritualizasse ou que a estorricasse de vez. Mas nunca fora espiritual. E por causa de Roberto Carlos a senhora estava envolta nas trevas da matéria, onde ela era profundamente anónima.

De pé no banheiro era tão anónima quanto uma galinha. A Srª Jorge B. Xavier era ninguém."

 

Há uma revolta brutal que arrebata a Sr.ª Jorge B. Xavier. Porque não poderá ela sentir-se atraída por um jovem, embriagada pela sua música "romântica"?

"…Então quis ter sentimentos bonitos e românticos em relação à delicadeza de rosto de Roberto Carlos. Mas não conseguiu: a delicadeza dele apenas a levava a um corredor escuro de sensualidade. E a danação era a lascívia. Era fome baixa: ela queria comer a boca de Roberto Carlos. Não era romântica, ela era grosseira em matéria de amor. Ali no banheiro, defronte do espelho da pia."

 

A Sr.ª Jorge B. Xavier imagina um momento profundamente erótico mas imediatamente se auto censura

"…Seus lábios levemente pintados ainda seriam beijáveis? Ou por acaso era nojento beijar boca de velha? Examinou bem de perto e inexpressivamente os próprios lábios. E ainda inexpressivamente cantou o estribilho da canção mais famosa de Roberto Carlos: “Quero eu você me aqueça neste inverno e que tudo o mais vá para o inferno”."

 

O conto não acaba bem, evidentemente. Desmoralizada, a Sr.ª Jorge B. Xavier  deixa-se derrotar :

"…Foi então que a Sr.ª Jorge B. Xavier bruscamente dobrou-se sobre a pia como se fosse vomitar as vísceras e interrompeu sua vida com uma mudez estraçalhante: tem! que! haver! uma! porta! de saííííííída!"

 

"À Procura de Uma Dignidade" (Últimos Contos) de Clarice Lispector, autora brasileira nascida na Ucrânia a 10 de Dezembro de 1920. Morreu a 9 de Dezembro de 1977 no Rio de Janeiro.  





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William Shakespeare não é especialmente caridoso ou simpático em relação à idade. As suas personagens mais velhas reflectem, em geral, uma disposição avessa à decrepitude, o que poderá considerar-se "normal", tendo em conta a sua época. No entanto, são inúmeras as reflexões sobre o desgaste do tempo nas várias idades do ser humano: o avanço da caducidade, a diminuição das faculdades físicas e psicológicas são motivo de preocupação e, também, pretexto para apontar uma e outra característica ridícula e até cruelmente cómica . Em "Como lhe Aprouver" (As You Like It - 2.7.143-70), através de Jacques - um beberrão que tanto fala como um bruto como diz coisas de uma beleza inaudita -  compara o mundo a um palco e os homens e mulheres a meros actores com as suas entradas e saídas; e continua a definir as várias (e famosas 7) fases da vida, desde a mais tenra infância nos braços da ama "a sugar e a beliscar", passando pelo estudante, o amante impetuoso, o soldado dado à luta, o justo com a sua barriga protuberante e a sua seriedade, até à velhice, "uma segunda meninice sem memória, sem dentes, sem olhos, sem gosto, sem tudo." ( ver excerto no fim do texto, p.f.). Mas é claro que duas das suas mais famosas criações de velhos insuportáveis são o Rei Lear e Fastaff, tão diferentes entre si como a Lua e o Sol. O drama Rei Lear - uma figura baseada num semi-lendário rei celta, Leir of Britain - conta a história de um poderoso monarca e a sua queda. É triste, sinistro, patético e delirante. Harold Bloom diz que Lear é o protótipo do D.W.E.M., o Dead White European Male, o macho alfa (branco e europeu) que entra numa espiral de decadência, demorando a morrer e irrompendo com feroz teimosia, aqui e ali, um pouco por toda a parte, na literatura e na cultura ocidental. Lear é o exemplo acabado do velho teimoso e vaidoso, despótico e maldoso. Apesar de a princípio reconhecer que a idade já não lhe permite governar eficazmente e que a "reforma" é aconselhável, o seu aparente bom senso transforma-se rapidamente em tolice sobre tolice e a suposta sabedoria que deveria ter acumulado com a idade, antes o arrasta para uma loucura que é fruto, apenas, das suas péssimas escolhas. Por sua causa há suicídios, guerras, traições e uma tragédia que não tem fim.

Quanto ao glorioso Falstaff, que nos delicia em nada menos do que três peças - Henrique IV, parte I e parte II e em As Alegres Comadres de Windsor -  com cada palavra proferida, com cada gesto traçado no espaço, a velhice é um pretexto para "filosofar": ele trava uma batalha feroz e permanente contra o tempo que, inexoravelmente, levará a melhor, mais cedo ou mais tarde. Mas, "enquanto dura vida e doçura" e o pantagruélico Falstaff não se coíbe de satisfazer os seus portentosos apetites, de se entregar a um alegre deboche e de desafiar a opinião comum - o príncipe Hal não mostra espanto se ele for morto por causa das suas ideias. O avançar da idade, para Falstaff impele-o a gozar a vida como se não houvesse amanhã, tornando-o imune ao medo de represálias da sociedade. Enquanto que Lear se deixa avassalar pela idade, perdendo o melhor que tinha - o amor da filha, o reino, a visão, a vida  - Falstaff, consciente da sua finitude, celebra o prazer de estar vivo. Duas visões que, com os seus aparentes contrastes, nos podem fazer pensar.

 

Jaques. All the world's a stage, 

And all the men and women merely players: 
They have their exits and their entrances; 
And one man in his time plays many parts, 
His acts being seven ages. At first the infant,
Mewling and puking in the nurse's arms. 
And then the whining school-boy, with his satchel 
And shining morning face, creeping like snail
Unwillingly to school. And then the lover,
Sighing like furnace, with a woeful ballad 
Made to his mistress' eyebrow. Then a soldier,
Full of strange oaths and bearded like the pard,
Jealous in honour, sudden and quick in quarrel, 
Seeking the bubble reputation 
Even in the cannon's mouth. And then the justice, 
In fair round belly with good capon lined, 
With eyes severe and beard of formal cut, 
Full of wise saws and modern instances; 
And so he plays his part. The sixth age shifts
Into the lean and slipper'd pantaloon, 
With spectacles on nose and pouch on side, 
His youthful hose, well saved, a world too wide 
For his shrunk shank; and his big manly voice, 
Turning again toward childish treble, pipes 
And whistles in his sound. Last scene of all, 
That ends this strange eventful history, 
Is second childishness and mere oblivion, 
Sans teeth, sans eyes, sans taste, sans everything. 

As You Like It (2.7. 143-70) 

 

 


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