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As Idades Maiores da Mulher... e do Homem. Para acabar de vez com a displicência em relação à gloriosa Senescência.
2013 é um gigantesco cemitério.
Um ano de morte.
De pessoas, de ideias, de ideais, de convicções, de afectos.
Mortes demasiado próximas (a minha Mãe muito amada, Tia, amigos tão chegados) – dores inimagináveis.
Mortes – como a de Nelson Mandela.
Mortes de milhares (milhões?) de pessoas, vítimas da guerra, de confrontos, de desastres, de catástrofes naturais, de crimes. Quanto às "minhas" mortes, ninguém tem nada com isso, faço o meu luto, melhor ou pior, em privado. Mas as outras mortes, as de pessoas que nunca conheci, são as que merecem um comentário, perseguem-me e afligem-me porque são o reflexo de algo tenebroso e feroz que nos ameaça. Porque nada acontece sem uma causa: existem tumultos – ao longo deste ano vimos, diariamente, confrontos violentos em cidades, em todo o mundo – porque as desigualdades se intensificam fruto de políticas selvagens que descriminam e separam as pessoas por razões económicas, sociais, políticas, religiosas. (Não me venham dizer que vivemos em paz porque não é verdade). As catástrofes naturais são cada vez mais violentas mas tal não muda o rumo das políticas dos países cujos governantes desdenham das urgentes soluções para resolver alguns dos mais prementes problemas ambientais. A criminalidade aumenta devido à fome e à pobreza que grassam nas mais prósperas sociedades onde as políticas dos últimos anos têm vindo a minar a educação e a saúde, os dois grandes bastiões contra a miséria. A diplomacia – que já foi tarefa de príncipes – de nada serve para resolver conflitos que se arrastam há anos e os serviços secretos dos países mais avançados tecnologicamente são uma anedota trágica.
Os grandes grupos económicos sustentam-se na corda bamba, recusando-se a mudar de rumo e tomando decisões cada vez mais drásticas e obviamente lesivas do bem comum. Os negociantes de armas, os extremistas, os assassinos, os que se regozijam com a devastação que criaram, e continuam a criar. tiveram um grande ano.
2013 foi um ano tumular, frígido, devastador. Apenas o Papa Francisco – sobre quem escreverei noutra altura e que já deve estar a incomodar muitos "bons católicos" porque veio desafiar as supostas boas acções e as práticas hipócritas – é pessoa que merece ser mencionada, a par de alguns artistas e desportistas. De resto, 2013 não trouxe nada a não ser o extremar do Mal – o que talvez nos faça ganhar uma consciência mais viva e mais activa. É impossível continuarmos a arrastar connosco os restos putrefactos da iniquidade, da deslealdade, da traição e da indiferença, da estupidez e da malquerença.
Fico-me com a ideia de que a morte também implica renovação, espaço para novas vidas, novas ideias, novos rumos. Significa que é necessário um novo ciclo, uma redenção. Em cada um e para os outros. Sem lamechices lunáticas, sem sentimentalismos coxos, sem preconceitos lamacentos, sem ódios provincianos e inúteis.
ACREDITAR. Um verbo que se tornou "viral". Acreditar é uma espécie de talismã, um baralho de cartas marcadas e guardadas na manga de umas tantas pessoas exaltadas que "não acreditam em nada". Diz-se muito por aí: "eu cá, não acredito em políticos", ou "ninguém acredita no governo" (vide Pacheco Pereira, recentemente) como se o exercício da política fosse uma religião, e os homens e mulheres da política estátuas de santos milagreiros. Parece que tudo se resume a esta dicotomia do acreditar/não acreditar.
Suponho que - mas posso estar enganada - "acreditar" esteja ligado à Fé e seja uma prerrogativa dos que crêem em algo superior, divino, do pelouro da metafísica. Algo inexplicável, portanto. Acreditar no que depende das acções de mulheres e de homens mais do que banais, não é nada, para mim. Não é racional. Não é uma atitude baseada na informação, no estudo, na pesquisa, no pensamento. Não é um exercício que obtenha resultados. Não é um trabalho mental de quem pratica a vasta "tradição" do pensamento, da filosofia.
Para além disso, acredita-se muito (ou não) mas exige-se pouco. Quando as coisas correm para o torto, deixamos de "acreditar" e atiramos a toalha ao chão. Quando um clube de futebol vai jogar, os adeptos "acreditam" na vitória. Se o clube perde, deixam de "acreditar" nos treinadores, nos jogadores, nos árbitros, etc. O deixar de "acreditar" leva a outro estádio, o da "desconfiança": as pessoas passam a "desconfiar" de tudo e de todos, enredam-se em teorias da conspiração, vivem em sobressalto, têm medo. É sempre preferível "acreditar" – ou "não acreditar" – porque é um exercício que exige pouco esforço e fica sempre bem.
Se não acontece aquilo em que acreditam, as pessoas continuam a acreditar (ou não), de preferência sem mexerem uma palha. Algumas pessoas acham que acreditam com força e bem, acumulando culpas por não terem acreditado com força suficiente, ou seja, "acreditam" que houve falhas na sua "fé" ou, rapidamente, colocam o ónus das derrotas em algo ou alguém exterior a si próprios, num passe de mágica que os "purifica". Os jornalistas passam a vida a fazer perguntas do género: "acredita que vai haver um 2º resgate? Acredita que o Tribunal Constitucional vai vetar isto ou aquilo? Acredita que o deficit vai subir/baixar? Acredita que este/aquela político/a é corrupta/o?
Somos realmente um País de fés, de milagres e de ilusionistas. Não admira que os aldrabões triunfem, que os vendedores de banha da cobra façam fortunas. Foi por "acreditar" em gente como Passos Coelho ou Portas ou Cavaco que estamos nesta embrulhada. Ao fim e ao cabo, só precisaram de fazer com que as pessoas "acreditassem" neles (as).
E reparem: quando as pessoas deixaram de "acreditar", ficou tudo exactamente na mesma.
Confissões I
Tinha uns dez, onze anos, quando decidi enveredar pela senda do Crime.
As senhoras da Mocidade Portuguesa percorriam o Liceu, aliciando-nos e prometendo fazer de nós (de mim) uma leal e robusta servidora da Pátria, uma saudável procriadora de mancebos e uma excelente dona-de-casa, obediente e fiel a um marido que certamente já se perfilava num horizonte "glorioso", decidido a oferecer-me óptimos electrodomésticos e uma vida recatada e cristã.
Mas eu não estava interessada.
Aquele "S" no cinto da fardamenta – duro, constrangedor, sinuoso e perverso – causava-me um certo incómodo, não explicável, uma vez que, como devem calcular, era muito ingénua e nada, mesmo nada, politizada.
Os meus pais, levemente pressionados, perguntaram-me a razão da recusa; eu fiquei na minha, fechei-me em copas e o assunto morreu por ali.
Em vez disso, tornei-me chefe de um gangue.
Em Lourenço Marques ( que hoje se chama Maputo) passava-se pouco tempo dentro de casa. As ruas eram largas e pacatas, os ruídos abafados pelas acácias luxuriantes. Estava calor. Nós, os miúdos, andávamos à solta. As aulas começavam às sete da manhã e o toque de saída era ao meio-dia, quando corríamos para a liberdade, para a piscina ou para a praia.
(Por baixo do uniforme da escola levava o fato-de-banho). Nadávamos e preguiçávamos ao sol. Acocorávamos – nos junto aos pescadores a vê-los tratar das redes ou a pintar os barcos. As alforrecas eram uma praga e quando acontecia ser atacada, um dos rapazes urinava docemente sobre a minha pele vermelha e irritada, trazendo um abençoado alívio.
As tardes alongavam-se, infinitamente. Havia pouco que fazer. O tédio apoderava-se de nós. A ideia de formar um gangue pareceu-nos aliciante. Eu lia muito, lia demais, tinha a cabeça cheia de aventuras e estava firmemente convencida que só a vida contada nos livros valia a pena ser vivida. Fizemos pactos de sangue – doía como o diabo abrir um sulco na mão com uma lâmina ferrugenta – e adoptámos nomes índios. Fui, durante uns tempos, a única rapariga do grupo, mais tarde destronada pela Nono, que era bem mais rápida e valente do que eu.
Não posso dizer que o gangue fosse sofisticado ou razoavelmente produtivo. As nossas acções, inventadas no momento, sem estudo estratégico preliminar, tinham a fraca dimensão da nossa (i)maturidade: entrávamos em casa de pessoas e roubávamos o que estava à mão - pastilhas elásticas, bolachas, coca-colas; corríamos a cidade de bicicleta, passando tangentes a velhinhas (como eu sou, agora); invadíamos os cinemas e instalávamo-nos sem pagar; descíamos até à Baixa e ocupávamos as pastelarias, onde nos empanturrávamos com bolos; dávamos "beijos de língua" uns nos outros; aterrorizávamos (pensávamos nós!) polícias, guardas e putos queixinhas; desobedecíamos aos nossos pais; atirávamos em latas, com a pressão de ar; descíamos as "barreiras", escorregando entre cactos e ervas daninhas; andávamos à pancada só pelo gosto a sangue e pó; subíamos às árvores e mandávamos fisgadas às pessoas que passavam. Também salvávamos animais abandonados e incluíamos os miúdos negros, filhos dos criados que trabalhavam nas nossas casas, nas nossas brincadeiras. Como bons bandidos, tínhamos uma lado filantrópico. E achávamos que estávamos a fazer uma grande coisa!
(Um parêntesis para recordar que, em Moçambique, não havia "apartheid" como na África do Sul, o que era aproveitado hipocritamente pela administração colonial como uma espécie de ascendente moral sobre os nossos vizinhos. No entanto as fronteiras entre brancos e negros estavam marcadas a traço grosso e eram bem visíveis. Nós, miúdos, sem conhecimento de causa, limitávamo-nos a ser "contra", a fazer algo que irritava ou incomodava as mentes bem pensantes e as figuras da autoridade.)
A minha mãe punha-me regularmente de castigo. Os nossos pais davam-nos sovas valentes. Gabávamo-nos muito de tudo aquilo.
Foi um tempo glorioso. Dava-me gozo mandar mas não quando me desobedeciam. Tinha de dar ordens àqueles miúdos ranhosos que só queriam dormir a sesta e enrolar cigarros com o tabaco de cachimbo que eu roubava ao meu pai; não pensavam verdadeiramente em nada.
Não percebiam que tinhamos uma Missão.
(Rapazes!)
Fartei-me depressa.
Foi a primeira e a última vez que fiz parte de um grupo.
Helena Vasconcelos, Setembro, 2013