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As Idades Maiores da Mulher... e do Homem. Para acabar de vez com a displicência em relação à gloriosa Senescência.
As mulheres de idade têm sido, até há pouco tempo, muito mal tratadas. Basta recordar ( e voltarei a referir esta questão ) que toda a iconografia dos contos tradicionais remete para a imagem das "bruxas" como mulheres velhas e horrendas. Reparem só na eternamente chata Branca de Neve, figura central desse conto tão cheio de sinais exteriores de profunda incorrecção : as meninas são bonitas, boas, puras e desejáveis; as mulheres mais velhas, quando começam a perder o seu bom aspecto, tornam-se más, cruéis, viciosas e horrendas.
Quanto aos homens, pelo contrário, envelhecem com dignidade: por exemplo, Merlim, o sábio, com as suas belas barbas e cabelos brancos é uma figura imponente e majestosa e não repugnante ou ameaçadora.
Para ilustrar esta ideia deixo-vos com as referências a um conto de Clarice Lispector, cheio de desesperada ironia e cruel sabedoria. Tudo acontece em torno da personagem com o estranho nome de Sr.ª Jorge B. Xavier, a qual, com os seus setenta anos, ainda se deixa embalar pela música do (então jovem) Roberto Carlos. E sozinha, pela calada, dá livre curso às suas fantasias amorosas. No entanto, ao olhar-se ao espelho, acha-se velha. Escreve Clarice:
"Examinou-se ao espelho para ver se o rosto se tornara bestial sob a influência de seus sentimentos. Mas era um rosto quieto que já deixara há muito de representar o que sentia. Aliás, seu rosto nunca exprimira senão boa educação. E agora era apenas a máscara duma mulher de setenta anos. Sua cara levemente maquilhada pareceu-lhe a dum palhaço. A senhora forçou sem vontade um sorriso para ver se melhorava. Não melhorou."
A Sr.ª Jorge B. Xavier repara nas discrepâncias entre o seu aspecto exterior e o que sente :
"Por fora – viu no espelho – ela era uma coisa seca como um figo seco. Mas por dentro não era estorricada. Pelo contrário. Parecia por dentro uma gengiva húmida, mole, assim como gengiva desdentada."
Para a Sr.ª Jorge B. Xavier o sexo, o erotismo ainda não se volatilizou do seu corpo. Mas na vida, tal como na literatura, as mulheres quando envelhecem têm tendência a tornar-se "invisíveis". É isso que acontece à Sr.ª Jorge B. Xavier.
Mas Lispector continua, implacável:
"Então procurou um pensamento que a espiritualizasse ou que a estorricasse de vez. Mas nunca fora espiritual. E por causa de Roberto Carlos a senhora estava envolta nas trevas da matéria, onde ela era profundamente anónima.
De pé no banheiro era tão anónima quanto uma galinha. A Srª Jorge B. Xavier era ninguém."
Há uma revolta brutal que arrebata a Sr.ª Jorge B. Xavier. Porque não poderá ela sentir-se atraída por um jovem, embriagada pela sua música "romântica"?
"…Então quis ter sentimentos bonitos e românticos em relação à delicadeza de rosto de Roberto Carlos. Mas não conseguiu: a delicadeza dele apenas a levava a um corredor escuro de sensualidade. E a danação era a lascívia. Era fome baixa: ela queria comer a boca de Roberto Carlos. Não era romântica, ela era grosseira em matéria de amor. Ali no banheiro, defronte do espelho da pia."
A Sr.ª Jorge B. Xavier imagina um momento profundamente erótico mas imediatamente se auto censura
"…Seus lábios levemente pintados ainda seriam beijáveis? Ou por acaso era nojento beijar boca de velha? Examinou bem de perto e inexpressivamente os próprios lábios. E ainda inexpressivamente cantou o estribilho da canção mais famosa de Roberto Carlos: “Quero eu você me aqueça neste inverno e que tudo o mais vá para o inferno”."
O conto não acaba bem, evidentemente. Desmoralizada, a Sr.ª Jorge B. Xavier deixa-se derrotar :
"…Foi então que a Sr.ª Jorge B. Xavier bruscamente dobrou-se sobre a pia como se fosse vomitar as vísceras e interrompeu sua vida com uma mudez estraçalhante: tem! que! haver! uma! porta! de saííííííída!"
"À Procura de Uma Dignidade" (Últimos Contos) de Clarice Lispector, autora brasileira nascida na Ucrânia a 10 de Dezembro de 1920. Morreu a 9 de Dezembro de 1977 no Rio de Janeiro.