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As Idades Maiores da Mulher... e do Homem. Para acabar de vez com a displicência em relação à gloriosa Senescência.
ANA VICENTE, morreu a 19 de Abril de 2015, depois de uma luta feroz contra o cancro que a vitimou. Dez anos antes, tinha estado com ela, na nminha casa do Estoril - éramos praticamente vizinhas - a entrevistá-la para um livro dedicado a mulheres - que nunca chegou a ser publicado com as entrevistas. Aqui fica o testemunho desta senhora invulgar, uma mulher única.
Entrevista Ana Vicente
Estoril, 2 Setembro, 2005
HELENA VASCONCELOS. Gostaria de lhe colocar certas questões que se baseiam em dois pontos essenciais:
O primeiro tem a ver com a sua história como mulher. Será possível dizer-me o que a faz sentir-se mulher e de que forma é que esse facto marca a diferença – positiva – de género e como vive essa condição?
O segundo relaciona-se com a forma como se materializa o seu interesse pelas chamadas causas das mulheres e o seu trabalho directo e interesse pela História.
ANA VICENTE. De facto tenho a sorte de ter nascido numa família em que as mulheres foram sempre muito importantes e, portanto, a memória da família é importante. Na minha família o valor das mulheres era e é, importante. Eu pertenço à quarta geração de feministas e a minha filha tem já uma filha e está à espera de outra – portanto espero que esta linha se perpetue. Outro dado curioso – a minha filha pertence à quinta geração que publica livros. E eu pertenço à quarta geração de mulheres que escrevem sobre a própria família. Tive uma bisavó, Bessie, feminista do século XIX, que escreveu livros de memórias, a minha avó fez o mesmo – dava-se com muita gente conhecida, com o Churchill e o Henry James, Graham Greene, Katherine Mansfield, por exemplo vivia no meio literário inglês – e a minha mãe recolheu muitos desses textos, editou-os e publicou-os
Tudo isto do lado da minha mãe que era jornalista inglesa, católica. A irmã dela casou com um conde mas ela casou com um jornalista. O pai dela era jornalista no Times e, trabalhou lá quarenta anos, a mãe escritora – free-lancer – a avó feminista activista, aparece nos livros todos sobre a história das mulheres no século XIX; depois apaixonou-se por um francês aos 38 anos, casou, viveram idilicamente durante cinco anos e depois ele morreu. Tiveram dois filhos, Hilaire Belloc e Marie. A minha mãe teve sempre muito orgulho na sua família, no seu meio. O meu pai, português também era oriundo de um meio chamado “profissional”, o pai dele era um engenheiro, formado na Escócia, o avô dele do lado da mãe era médico mas estava ligado ao meio teatral e produziu imensas peças – Anacleto de Oliveira. A minha avó paterna não tinha profissão, era doméstica mas era uma personalidade. Tudo isto porque acabei de escrever um livro sobre a minha família. O meu pai sempre teve grande admiração pela minha mãe. Eu nasci num meio em que as mulheres sempre foram muito consideradas – tenho um irmão e uma irmã – embora não queira dizer que tudo fosse perfeito. A minha mãe, como inglesa, ao casar com um português desejou seguir os cânones portugueses, não me queria deixar sair sozinha quando eu era adolescente. E achava que era normal que eu casasse e o homem é que era suposto sustentar a família, e disse-me que eu não devia preocupar-me com a carreira. Assim, eu fui para o Colégio inglês, o St Julian’s School em Carcavelos e depois fui para um Colégio de freiras em Inglaterra, onde a minha mãe já tinha andado. Um colégio muito rigoroso mas não só em termos de conduta como exigente em termos intelectuais. Apesar disso, depois disseram-me que era melhor eu aprender dactilografia mas eu não tinha tal ambição. E, nessa altura, eu não fui para a Universidade. Sou muito independente e queria ganhar dinheiro e ser autónoma. Lembro-me – porque sempre fui anti-salazarista – que me revoltava a situação das mulheres. Revoltava-me que a minha mãe tivesse de ter licença do meu pai para ir, de dois em dois anos, visitar a família a Inglaterra. Muito cedo despertei – sem ter sido oprimida – para a injustiça do desequilíbrio de poder entre homens e mulheres. Por exemplo, mesmo na minha família, era claro que o meu irmão, por ser homem, iria para a Universidade. Em Portugal, um homem que não vá para a Universidade, está perdido… (É advogado). A minha irmã, tal como eu, não foi obrigada nem estimulada a estudar a nível superior. E eu tenho outra característica: sou muito militante. Gosto de me empenhar em causas. Fui dirigente da PRAGMA e fui presa pela polícia política (Pide) porque era dirigente de uma cooperativa cultural e era a única mulher. Estive dois dias presa mas o meu sogro, que era advogado, teve clientes assassinados pela Pide. Os comunistas pobres que o meu sogro defendia eram assim tratados. Aconteceram coisas terríveis no País dos bons costumes. Interessei-me sempre pela causa anti-salazarista. Uma das questões que a Pragma abordava era a da situação das mulheres. Foi fechada, o director era o Arquitecto Nuno Teotónio Pereira que foi preso mais do que uma vez. Integrava-me tal como ele no Grupo dos chamados Católicos Progressistas que se reuniam na Capela do Rato[1]. Eu não participei nessa altura porque estava em Paris mas eram as causas com as quais me identificava. Lembro-me que quando o Papa Paulo VI anunciou que ia à Índia, Franco Nogueira que era Ministro dos Negócios Estrangeiros quis que os portugueses não soubessem nada dessa viagem. E houve um grupo de católicos, no qual eu estava, dirigidos pelo corajosíssimo Teotónio Pereira, agora com 83 anos, que fez um jornal clandestino em Espanha. Eu tinha contactos na Juventude Operária Católica Espanhola – que eram anti-franquistas - porque tinha acompanhado um grande encontro de Juventude Católica onde fui como tradutora - gratuitamente, obviamente. Produzimos um Jornal chamado “Igreja, Presente” com a notícia da ida do Papa à Índia.
Eu gosto de ser militante. Mas tenho a noção que há certas atitudes “militantes” que, em Portugal, podem cair rapidamente no ridículo. Dou-lhe um exemplo. A questão da ordenação das mulheres na Igreja Católica. Em Inglaterra e na Alemanha, para dar só dois exemplos, as mulheres manifestam-se continuamente. De cada vez que há uma ordenação – de padres – elas manifestam-se dizendo: nós também queremos ser ordenadas e só o não o podemos fazer por sermos mulheres. Nós nunca fizemos isso em Portugal, primeiro porque infelizmente só seríamos quatro ou cinco. Sou sensível a estas diferenças culturais. Há em Portugal uma tendência para banalizar e ridicularizar essas manifestações, o que não ajuda as causas.
H.V.: Essa é uma cultura muito anglo-saxónica e que não está enraizada na cultura portuguesa.
A.V. Sim, a minha mãe já era assim. Comecei a trabalhar com o meu pai, que tinha o jornal Anglo-Portuguese News, fui trabalhar noutros lugares – trabalhei como Professora de Inglês no ISLA (Instituto Superior de Línguas e Administração) e trabalhei em publicidade, onde conheci o meu marido com quem casei em 1970. O meu marido era filho do Arlindo Vicente[2] e a sua actividade de docente na Universidade foi prejudicada por se ter recusado a assinar uma declaração a dizer que era anti-comunista. O meu marido não era comunista mas era assim, nesses tempos. Entretanto fui para um Curso de Cultura Religiosa, em horário pós-laboral – trabalhava – porque sempre me interessaram os temas religiosos e a religião. Os meus pais eram profundamente católicos, praticavam o catolicismo quotidiano e não aquele em que se vai só à missa para mostrar aos outros. Era uma questão de formação: liam, estudavam e eu fiz o mesmo. Só mais tarde percebi como a Licenciatura era importante, fiz o Curso de Línguas e Literaturas Modernas – Estudos Portugueses e Ingleses na Universidade de Lisboa. Em 1970 fomos para Paris – onde nasceu a minha filha – porque o meu marido teve uma Bolsa de Investigação da Fundação Calouste Gulbenkian – a única entidade que o fazia – e lá estivemos três anos e meio, enquanto ele se doutorou e eu aproveitei para estudar em Vincennes. O meu marido sempre me apoiou e, coisa rara nos homens portugueses, não tem “inveja” de mim. Pelo contrário, incentiva-me e apoia-me muito, e eu a ele. Uma relação de total igualdade e de grande consideração e respeito mútuos. É claro que ele é filho de um homem que na campanha de 1958 integrou as questões das mulheres. Voltámos a Portugal poucos dias antes do 25 de Abril, os dois desempregados e com uma filha. Mas em Outubro o meu marido entrou finalmente para a Universidade como docente e eu entrei para o Gabinete de Maria de Lurdes Pintassilgo que foi nomeada Secretária de Estado da Segurança Social do Primeiro Governo Provisório. Repare que ainda não era licenciada mas fui trabalhar no gabinete de assessores de Imprensa. Foram momentos exaltantes e eufóricos e em 1975 fiquei á espera do meu filho. Não andava na rua, tinha de trabalhar e estava grávida. Acompanhei muito tudo aquilo. Outra coisa que eu fiz logo a seguir ao 25 de Abril foi trabalhar como tradutora/intérprete "free-lancer" de jornalistas estrangeiros que caíram aos magotes, cá em Portugal. Fui intérprete de uma entrevista dada por Álvaro Cunhal, cerca de três semanas depois do 25 de Abril. Ele estava no edifico da Assembleia da República e nunca poderei esquecer a sensação de subir aquelas escadas e entrar por ali fora, num lugar em que apenas três semanas antes eu seria imediatamente detida. De um dia para o outro tudo mudou. Todas as referências mudaram. E ir á Prisão de Caxias e vê-la repleta de Pides, em vez de presos políticos.
Vivi em Espanha, onde fiz algumas disciplinas das quais consegui equivalência cá. Logo a seguir ao 25 de Abril entrei para a Administração Pública a convite de Maria de Lurdes Pintassilgo. Quando ela saiu, depois do 11 de Março, eu fui ficando nos gabinetes sucessivos até ao 6º Governo Provisório, quando fui saneada “á esquerda” com outras pessoas. Eu nunca me filiei num Partido. Também me lembro quando comecei a escrever. Escrevia poemas quando era nova, cheguei a publicar alguns – cortados pela censura – no Diário de Lisboa Juvenil – e depois do 25 de Abril escrevi artigos para o Jornal para o República – eu era amiga do Raul Rego – e só pensei no meu primeiro livro que saiu em 1987 – “Mulheres em Discurso”. Escrevi este primeiro livro porque em 1983 quando parti para Espanha – entretanto tínhamos feito um trabalho na Crónica Feminina com artigos sobre Planeamento familiar. A Susana Ruth Vasques escrevia artigos muito bons e nós oferecíamos artigos sobre planeamento familiar ou como tratar do seu bebé, etc. Com esse material e as cartas dessas mulheres que nos escreviam fiz esse livro “Mulheres em Discurso”, Ed. Imprensa Nacional. Escrevi o meu segundo livro em Espanha, enquanto escrevia artigos para o Diário de Notícias. Eu lia o El Pais todos os dias e li uma notícia – há coisas destas que nos fazem enveredar para um determinado rumo. Fernando Móran – que na altura era Ministro dos Negócios Estrangeiros – resolveu abrir os arquivos históricos do seu Ministério com um recuo de vinte e cinco anos”. Estávamos em 1985 ou 1984. E eu fiquei cheia de curiosidade em relação ao que lá estaria em relação a Portugal e Espanha. Durante um ano fiz pesquisa em material nunca antes visto. Quando voltei para Portugal, em 1986, e depois de vários anos, com o material acumulado publiquei “Portugal visto pela Espanha” e é claro que meti lá as histórias de mulheres. Quando voltei para Portugal, ainda trabalhei por pouco tempo na Comissão mas depois comecei a trabalhar para as Nações Unidas, para a Organização Mundial de Saúde, como consultora, no sentido de levantar problemas. Fui consultora em Moçambique em 1984 – um momento terrível. Em Portugal fui para o gabinete de Leonor Beleza, então Ministra da Saúde e aí dediquei-me ao Projecto Vida – relacionado com o consumo de droga. Apercebi-me que 80% dos toxicodependentes são homens. Porquê? Trabalhei quatro anos como secretária geral deste projecto. Anos muito interessantes, muito importantes, muito intensos. Sempre trabalhei muito e às vezes sinto um bocadinho de culpa em relação aos meus filhos mas tenho consciência de que lhes dei – e dou – o mais importante, exemplos de vida, de empenhamento. E ainda fui Presidente da Comissão para a Igualdade, estive lá quatro anos. Foi também um tempo muito importante, vivi o encontro do Cairo (1994), vivi o Encontro de Pequim (1995). Quando veio o Governo Guterres pus o meu lugar à disposição. E saí radiante porque já estava há nove anos em lugares de chefia. Pedi equiparação a bolseira, para escrever um livro. E escrevi dois livros “Os Poderes das Mulheres e os Poderes dos Homens” e “As Mulheres em Portugal na Transição do Milénio”. Continuei com o meu trabalho de formação de formadores em África no âmbito da saúde reprodutiva chefiado pela Dra Maria da Purificação Araújo para pessoal de saúde, nos países de expressão portuguesa onde falava das questões da igualdade, lançámos muitas sementes, gosto muito de África. Foi um trabalho que durou dez anos e acabou porque as Nações Unidas – e muito bem – optaram por outra estratégia.
Eu sempre me interessei pelas questões ligadas à contracepção e sexualidade.
H.V. Como lidou com as diferenças culturais? Em África existem muitas culturas.
A.V. Claro. Em S. Tomé e Príncipe, por exemplo, é interessante que os homens mudam de mulheres mas as mulheres também mudam de maridos, embora elas sejam as responsáveis pelos filhos. Aliás sou amiga de uma ex Ministra da Saúde de S. Tomé, Dra Dulce Gomes, que é médica e ela criou lá uma instituição com o apoio de uma Instituição portuguesa a que estou ligada, a “Novo Futuro”[3] . Até em S. Tomé há crianças abandonadas o que é estranho.
A grande força de trabalho em Portugal são as mulheres. Os homens não se vêem a trabalhar. Vai-se a qualquer lado, ao Banco, às Finanças e só se vêem mulheres. O que é que os homens andam a fazer? Muitos são alcoólicos.
H.V.: O que acha desta polémica em relação ao aborto?
A.V. trabalhámos muito nisso e em mim há um bloqueamento. A minha posição é esta, como católica que desde o momento da concepção há uma vida em potência. Mas repugna-me saber que há mulheres que, com muito sofrimento, em 99% dos casos, resolvem interromper a gravidez, por razões muito pessoais. O que eu não posso admitir é que haja leis que mandem mulheres para a prisão por isso. Vai surgir para o ano, um trabalho meu que está a ser coordenado por Guilhermina Gomes sobre o anti-feminismo em que conto várias histórias entre elas a de uma abortadeira francesa que foi executada durante o Governo de Vichy. A maior penalização da mulher é o próprio aborto. Não é o caso de algumas, poucas mulheres irresponsáveis que interrompem a gravidez porque não lhes dá jeito, porque tinham férias marcadas ou algo assim. Mas não me compete julgar essas pessoas. Sei que são em número muito pequeno. Acho que não se deve fazer um aborto depois dos cinco meses e meio. É uma questão muito complexa e deve ser tratada como tal. Votei sim no 1º referendo sobre o aborto e neste referendo voltarei a votar sim. No 1º referendo não tomei uma posição pública porque há dez anos envolvi-me no Movimento “Nós Somos Igreja” que é um movimento de âmbito nacional que pugna por alterações na Igreja católica.
H.V.: Incluindo a ordenação de mulheres?
A.V. mais do que isso. O que pretende é uma Igreja diferente, sem a hierarquia pesada, sem o lugar do sacerdote como uma figura especial. Somos todos sacerdotes pelo baptismo. Jesus Cristo, nos Evangelhos, o único sacerdote vem abolir o sacerdócio como nós o conhecemos. Sacerdote é uma coisa pagã. Quando me dizem que a falta de padres é uma desgraça para a Igreja católica eu acho que quantos menos padres houver, melhor. Em S. João do Estoril há uma comunidade de três freiras, entre elas a irmã Elvira que transformou uma comunidade de imigrantes, de pessoas que vieram de barracas e deu-lhes dignidade: comida, ocupação, livros, etc. e na missa é um padrezinho que lá está, há um novo beneditino que é amoroso e que tem respeito pela comunidade mas que é um bocadinho infantil mas elas é que são importantes.
Este nosso movimento é mal visto pelas facções mais conservadoras da Igreja; eu tenho esse estigma de ser pró-aborto. Ninguém é a favor do aborto, toda a gente é contra o aborto mas o problema é mandar as pessoas para a prisão por abortarem
H.V.: E qual é a sua opinião, como católica, em relação ao casamento entre homossexuais?
A.V. Sou totalmente a favor. Acho abjecta a campanha contra os homossexuais. Tenho um primo que vive com o mesmo homem há anos e anos e têm uma estabilidade que não encontro em muitos casais heterossexuais. Já tem 72 anos. O que interessa é como vivemos a relação com os outros e o amor e respeito pelos outros. Sou a favor do reconhecimento pelo Estado de uma relação em que duas pessoas do mesmo sexo queiram assumir um compromisso mútuo como o casamento. Face à adopção, a minha atitude é a seguinte: deve ser primariamente em função da criança. A criança precisa de uma atenção única – não a de uma instituição que deve ser não permanente. O importante é o amor canalizado para a criança. Quantos casais heterossexuais não cumprem esse requisito? Se houver um casal de homossexuais que tenha esse tipo de amor, cuidado e atenção em relação a crianças, devem poder adoptar como os outros. Eu identifico, no meu próximo livro, três grupos que são os protagonistas do anti feminismo: os pensadores e os críticos nos séculos XIX e XX, a Igreja e as próprias mulheres, principalmente as mães que educam os filhos de maneira diferente das filhas.
H.V.: Porque há também uma responsabilidade cultural, atávica, das mulheres nesse anti feminismo…
A.V. Exactamente. E isso tem sido pouco assumido pelas feministas. Temos de identificar os nossos inimigos, mesmo que sejam mulheres. Temos de determinar o porquê da nossa ineficácia.
H.V.: Porque temos de saber como podemos reeducar-nos todos – homens e mulheres – para podermos ter liberdade, tolerância,
A.V. Respeito pelas diferenças
H.V. E para termos a capacidade para termos ideias próprias.
A.V. Em Portugal, há falta de sentido cívico, de ideia de comunidade. Os portugueses são de um individualismo doentio e os sinais estão em todo o lado. Cada um faz como quer e olha-se muito para o lado. Como é que não intervêm quando há violações, maus-tratos, etc. Somos muito mal organizados em termos de voluntariedade.
H.V.: A Ana não se sente enquadrada num “padrão” imposto pelos partidos… sendo feminista e católica…
A.V. Sim e fui, como disse, “saneada pela esquerda” – dispensada – logo de seguida convidada por três serviços do Estado, entre eles a Comissão da Condição Feminina, onde entrei em 1976 e aí trabalhei muitíssimo naqueles tempos fabulosos em que já a Comissão actuava como o chamado Feminismo do Estado – tínhamos condições de trabalho e apoio político. Pudemos fazer trabalho militante em que tínhamos de mudar todas as leis. Todas. A partir do dia em que se mudou a Constituição TUDO tinha que mudar. Foi um momento maravilhoso e fulcral da mudança do Código Civil – que era revoltante. A Leonor Beleza – ela foi a primeira mulher que foi convidada mal acabou o Curso de Direito a entrar directamente como docente (Assistente) da Universidade porque por exemplo a Magalhães Colaço[4] teve de se doutorar e lutar para se integrar no corpo docente da Faculdade de Direito. Quando faço conferências fora de Portugal e digo o que se passou cá no nosso País antes de 1974, as pessoas nem acreditam. Nos primeiros tempos fantásticos da Comissão da Condição Feminina, pessoas como a Regina Tavares da Silva, a Maria Reynolds de Souza, a Madalena Barbosa, a Isabel Romão, a Leonor Beleza, eu própria, fizemos um trabalho que era aliciante, nós éramos de facto militantes, não éramos apenas funcionárias. Toda a gente nesses lugares trabalha mesmo e os que não trabalham é porque são mal orientados pelas chefias.
H.V: Quer dizer que foi um momento em que foi possível por em prática, em campo, aquilo em que acreditavam e que tinha sido objectivo da vossa luta.
A.V. Mudámos as leis todas, a lei do Trabalho, da nacionalidade, o Código Civil, como já disse. As pessoas não pensam como a Lei é importante. É importantíssima. Porque mesmo que a Lei a certa altura já não seja adequada, as pessoas têm de a seguir. Um exemplo clássico é a que se refere ás crianças que nascem fora do casamento. No antigo Código Civil não herdavam igualmente. Agora mesmo que haja pessoas ultra reaccionárias que estigmatizem as crianças nascidas fora do casamento têm de obedecer à lei. E quando as pessoas se divorciam têm de obedecer à lei. Para mim, que não sou jurista, as leis são fundamentais. Se a casa jurídica não está arrumada os países não funcionam. Já trabalhei em Moçambique, Angola e S. Tomé e Príncipe e, para mim, o grande e dramático problema destes países é a ausência de Estado. A ausência de Estado é tão grave como “demasiado Estado”, que era o que existia nos países comunistas por exemplo. Se há um colapso das Instituições as pessoas tornam-se uns selvagens, como qualquer de nós. O ser humano é o pior dos animais.
H.V.: Mas nesse momento do início da Comissão da Condição Feminina, quando deitaram mãos à obra, o que é que encontrou, em Portugal?
A.V. O que é interessante – e que muitas pessoas têm estudado – é porque razão em Portugal os movimentos das mulheres são tão fracos? Antes do 25 de Abril, compreende-se. Havia algumas mulheres, normalmente dentro do Partido Comunista que lutavam pelos direitos das Mulheres mas não havia nenhuma corrente de pensamento e de vontade, nenhum movimento. E os homens ditos de esquerda – isto é os que eram anti-salazarismo – eram tão anti feministas como os outros. Mas pós 25 de Abril e até hoje, os movimentos feministas são muito fracos. As organizações ambientalistas, por exemplo, têm muito mais força em Portugal do que as organizações feministas porque os políticos têm medo das organizações ambientalistas e não têm qualquer receio das organizações de mulheres. E em Espanha vão para a rua e fazem manifestações de milhares de mulheres, mobilizam pessoas – homens e mulheres contra a violência doméstica, por exemplo. Porque é que nós não temos nada disso. Há falta de solidariedade entre as mulheres há falta de consciencialização por parte dos homens em relação a estes. Isto está estudado pelas Nações Unidas: quanto maior o desequilíbrio de poder entre homens e mulheres maior é o subdesenvolvimento.
H.V. E quanto à contracepção?
A.V. Na Comissão da Condição Feminina, nos primeiros tempos, trabalhei especificamente, com a Maria Reynolds de Souza, no desenvolvimento do planeamento familiar. Ainda não se falava em saúde reprodutiva. Educação para o planeamento familiar. Eu sou, como já disse, católica praticante mas sempre discordei da posição que considero anti-cristã, que afirma que certos métodos contraceptivos não podem ser usado. Mesmo em termos de justificação teológica os termos do Humana Vitae, (1968) a encíclica do Papa Paulo VI está mal justificada. Fizemos alguma pesquisa. O que é essencial é que sejamos responsáveis pelo nascimento dos nossos filhos. É a atitude que importa. Os contraceptivos obviamente iludem a Natureza. Muita gente que estuda estes assuntos tem a opinião que foi a partir dessa altura que a autoridade do magistério da Igreja Católica começou a desmoronar-se. Porque, na realidade, 90% de bons católicos, em total boa consciência, em algum momento da sua vida usa métodos anti concepcionais. Não talvez em África. A questão da Sida em África é tão grave e criminosa.
H.V. O que descobriu ao fazer pesquisa para este livro “As Mulheres Portuguesas vistas por estrangeiros”?
A: V. Um dos livros que refiro é escrito pela minha mãe. E foi um conjunto de pessoas – incluindo o meu marido, amigos, a minha filha – que coleccionaram livros de viagens e eu comecei a pensar que tinha material para investigação. E tiro o chapéu à Piedade Ferreira, que é a minha editora, e que tem uma intuição fantástica. A minha filha ajudou-me muito sob o ponto de vista teórico e li muitos livros de estrangeiros. O olhar dos estrangeiros não é a verdade histórica absoluta – até porque isso não existe – mas é um olhar que tem um distanciamento e se achamos algumas coisas estranhas e pensarmos bem, podemos tirar conclusões. Vemos que as mulheres portuguesas atravessam os tempos sendo muito fortes, muito capazes e simultaneamente muito desmerecidas muito desmunidas do poder, da educação. Dizer que as mulheres não trabalhavam. As mulheres portuguesas à parte os casos de alguma burguesia trabalharam sempre com grande energia e força.
1- “Em Lisboa a 31 de Dezembro de 1972 a polícia deteve 91 pessoas que haviam escolhido o altar de uma Igreja de Lisboa ( Capela do Rato) para meditar sobre sentido da Guerra em África.
2 - Dr Arlindo Vicente candidato do partido Comunista Português nas eleições presidenciais de 30 de Maio de 1956, tendo desistido a favor de Humberto Delgado
3 - Associação de Lares familiares para Crianças e Jovens, Lisboa, fundada em 1996 www.novofuturo.org
4 - Professora Dra Isabel Magalhães Colaço – 1ª mulher portuguesa a douturar-se em Direito - 1926-2004